PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
21-09-2020
A idade tem destas coisas.
Chegamos a uma dada altura e começamos a fazer balanço.
E quer melhor sítio para tal que defronte do mar revolto da Ericeira?
Sentado com os pés enterrados na areia, sentindo os últimos raios quentes do Verão, pus-me a deambular pelo passado.
Não acredito nos que dizem que fariam tudo igual outra vez.
Tenho sempre a sensação de que, ou mentem ou são burros.
Sim, porque tal como dizia a minha avó (se calhar não dizia mas pronto), só os burros não aprendem com os erros.
E não me venham dizer que há alguém que nunca os cometeu!
Eu então foi um fartote!
Mas, como diz a canção, no balanço de perdas e danos, embora tenha tido muitos desenganos, acho que o saldo é positivo.
Das poucas coisas que ainda hoje me atanazam o espirito, está aquela noite de Santo António, haverá para aí uma década.
Foi a última vez que o vi.
Subia eu a rua, quando já perto de casa, um vulto me envolveu nos braços.
Primeiro pensei que era mais um folião bêbado de Santo António, embora a noite fosse ainda jovem para tamanha bezana.
Afastei-o e foi aí que o reconheci: o homem da monosobrancelha.
Estava velho, magro, mas mesmo assim não havia dúvida: Era ele!
Eu que o fazia morto e enterrado, tive um calafrio, logo seguido dum acesso de raiva que em mim não é propriamente usual. Pelo menos assim, sem qualquer razão.
- Que andas por aqui a fazer desgraçado? - Tentei empurrá-lo mas ele agarrava-se a mim como um náufrago. Parecia querer falar mas não lhe saia um som.
- Larga-me estupor.
Embora velho, o gajo tinha uma força de mil diabos. Com os olhos exorbitados, abrindo a boca como um peixe fora de água, puxou-me para uma verdadeira dança de S. Vito que durou alguns segundos.
Entre puxões e empurrões, varremos a rua dos caixotes de lixo com enorme alarido.
O homem agarrara-se a mim como uma lapa, vá lá saber-se porquê.
Em bom rigor, eu conhecia-o, mas ele a mim certamente não. Tenho uma daquelas caras iguais a centenas de outras anónimas, sem qualquer sinal especial. Já ele…
Por fim consegui libertar-me com um empurrão mais forte. Desequilibrando-se caiu de costas no degrau da entrada do prédio e ali ficou sem dar acordo.
Afastei-me como se se tratasse dum leproso imundo e subi a rua sem olhar para trás. Ainda ouvi abrir-se uma janela num andar qualquer mas não me voltei.
Só no dia seguinte lembrei-me do som de melancia a quebrar que se seguira à queda do patife. Esse som e essa dúvida ainda hoje me perseguem.
Até porque na verdade, não foi essa a última vez que o vi. Mas então, já muitos o rodeavam e a polícia mandava dispersar que ali já nada mais havia a fazer.
Foi a primeira vez que escrevi duas linhas de fait-divers no jornal: “ Noite de Santo António acaba com um cadáver em bairro popular de Lisboa”.
Embora o soubesse, não lhe dei nome.
Anónimo era mais fácil esquecê-lo.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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