PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
06-07-2020
Eu nem quero acreditar…
Depois de muitos dias ao telefone a tentar convencer o meu Joãozinho, a ficar cá em casa, quando viesse agora passar uns dias de verão a Portugal, liga-me ele a dizer que o hospital onde trabalha, não deixa ninguém vir a Portugal.
E parece que o próprio governo não aconselha.
Bonito serviço.
Primeiro era ele que estava hesitante, porque dizia que tinha casa, e não queria estar a incomodar-me.
Depois, lá lhe fiz ver o disparate que isso era, aqui tinha quem tratasse dele, e até me podia dar um jeito na televisão que não me parecia estar lá muito bem.
Aí ele animou-se mais, e disse-me que aproveitava para pôr na televisão uma coisa com um nome esquisito, net qualquer coisa, que me fazia ver todos os filmes e mais um, recostadinha no sofá, o que, para quem tem de estar enfiada em casa, ajuda muito.
E agora diz-me que não pode.
Eu estou tão farta de estar sozinha aqui dentro de casa que dou por mim a ter saudades de tudo.
Juro: estou cheia de saudades de Fonte Boa de Cima, das tareias que a minha mãe me dava, dos rapazes a chamarem-me coisas feias e a atiraram-me terra para a cara.
Nem quero pensar mais nessas coisas senão, ainda acabo por sentir saudades do paspalhão do meu Faustino, sempre bêbado e a ressonar.
Há espelhos cá em casa e por isso, não tenho ilusões a meu respeito.
Nunca fui bonita nos dias da minha vida.
Bonita, era a Floripes, no nosso tempo de miúdas em Fonte Boa de Cima.
Às vezes penso no que terá sido feito dela… Deve ter casado com um gabiru qualquer, daqueles muitos que andavam sempre à roda dela.
Mas há mais feias do que eu…
Olha, a Quitéria… Feia como uma noite de trovões, sem ofensa para os trovões… mas cheia de dinheiro.
Uma coisa compensava a outra.
Acho que ainda é viva… Deve ter quase cem anos, penso eu… Costumava vê-la lá em Fonte Boa de Cima, toda aperaltada e sempre muito chorosa do seu Álvaro que, segundo ela, tinha sido a pessoa que mais a amara na vida.
Nós, quando ouvíamos aquilo, corríamos para casa e ríamos à gargalhada…
Em Fonte Boa de Cima, toda a gente conhecia a história da Quitéria e do Álvaro.
A Quitéria, podre de rica, terras, uma fábrica, dinheiro no banco, tudo herdado de pais e avós, de quem era a única descendente.
O Álvaro, sem ter onde cair morto, muito mais novo do que ela, mas lindo de morrer e com um parlapié que convencia toda a gente.
Um dia, numa roda de amigos, o Álvaro veio com um estranho plano.
- Ó malta, vejam lá se isto não é uma grande ideia. Vou casar com a Quitéria.
As gargalhadas ouviram-se cá fora, mas que foi que te deu? Que maluqueira é essa? Ela podia quase ser tua mãe, e feia, feia...
Mas o Álvaro já tinha o plano todo na cabeça.
- Vão ver, ela já não deve durar muito, sei lá se tem alguma doença, mas é capaz de ter, já ouvi alguém dizer que o coração dela não andava muito bem… Casamos. E não a vou deixar parar um segundo: vamos a Espanha, vamos a Paris, vamos ver as Cataratas do Niágara, vamos andar de gôndola em Veneza... a desgraçada não aguenta tanta viagem, tanta movimentação, dá-lhe um treco e cai morta, e cá o Je, fica-lhe com a fortuna toda. Não é bem pensado?
Era, realmente. Casaram.
Ele tratava-a como uma princesa. Passaram as férias em Benidorm, e daí foram conhecer as outras grandes praias de Espanha.
Subiram à Torre Eiffel, caminharam por todo o Museu do Louvre, viram todos os castelos do Loire (aí ela começou a dizer que estava ligeiramente cansada, e ele começou a esfregar as mãos), quando estavam diante das Cataratas do Niágara, ela pediu-lhe que regressassem. Já não era uma criança e, além disso, agora ainda queria ter tempo para conhecer bem Portugal.
- Claro, minha querida, Portugal também merece ser visitado…
Voltaram a Portugal.
No aeroporto ele alugou um carro para irem para Fonte Boa de Cima e depois dali, logo se via. Meteram-se à estrada, ambos muito felizes.
Numa curva, um tipo vinha fora de mão, chocaram de frente, e o Afonso chegou morto ao hospital...
Desde aí, ninguém aturava a Quitéria, a chorar pelo seu Afonso, que a tinha levado a conhecer meio mundo só para a fazer feliz… E como ela tinha sido tão feliz com ele…
Bom, eu não queria um Afonso na minha vida, mas mesmo com a minha idade, não se arranjava para aí um velhote para me fazer companhia?
A vizinha Perpétua parece que se dá muito bem com o seu Isidoro.
Dava-me jeito, por acaso.
Vou para a janela (só me falta o pó de arroz...), ver como estamos de paisagem...
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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