PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
27-07-2020
Já não aguento mais…
Qualquer dia morro aqui estatelada no chão e ninguém dá por isso…
Acho que vou arriscar mesmo e vou até à rua.
Quando é que eu alguma vez pensei em descer estas horríveis escadas sozinha?
Tenho a certeza que o fantasma do senhor Juiz, que um dia caiu por elas abaixo e morreu, me há-de perseguir o dia inteiro. Mas vou arriscar. Quero lá saber de fantasmas!
Mas, como dizia a minha mãe, eles nunca nos abandonam.
Uma vez, era eu miúda, lá em Fonte Boa de Baixo, a minha mãe mandou-me ir buscar uma certidão de nascimento do meu pai, que estava dentro de uma gaveta cheia de papelada, num móvel no sótão, onde ele passava o tempo todo.
Ninguém lá entrava senão ele.
E depois de ele ter desaparecido, também ninguém se interessou por isso.
Lá subi as escadas que iam dar ao sótão, remexi naquela porcaria toda, poeirada e mais poeirada, e finalmente encontrei o papel que a minha mãe queria.
Ia a descer as escadas quando, sem eu entender como, caí e vim a rebolar até cá abaixo.
Choraminguei quando a minha mãe apareceu.
Ninguém lá entrava senão ele.
E depois de ele ter desaparecido, também ninguém se interessou por isso.
Lá subi as escadas que iam dar ao sótão, remexi naquela porcaria toda, poeirada e mais poeirada, e finalmente encontrei o papel que a minha mãe queria.
Ia a descer as escadas quando, sem eu entender como, caí e vim a rebolar até cá abaixo.
Choraminguei quando a minha mãe apareceu.
- Ó mãe, não sei por que é que eu caí… Não tropecei em nada…
Ela encolheu os ombros e pareceu não se importar muito.
- Claro que não tropeçaste… Nem caíste...
Olhei espantada para ela e para a nódoa negra na minha perna.
- Claro que não caíste… Tu foste empurrada… Ali era o sítio onde o teu pai estava sempre. Foi ele que te empurrou… Sabes perfeitamente que ele não gostava de ti… Nem de nós… Por isso é que eu nunca vou ao sótão…Tenho a certeza de que também vinha pelas escadas abaixo… Eles atormentam-nos a vida inteira…
Mas o Senhor Juiz nem me conhecia, por isso não há-de haver azar.
Eu gostava era de ter alguém que me viesse buscar, e se preocupasse comigo como aquela catraia que passa muitas vezes aqui na rua e está sempre a chamar pelo Doutor. Por acaso, aqui há uns tempos, ia bem acompanhada e não era o doutor… Mas ter um namorado agora, também não deve dar jeito nenhum, ninguém se pode abraçar, ninguém se pode beijar. Raio de tempo. Tenho a certeza que o meu Joãozinho, se cá estivesse, também me ajudaria muito.
E por falar em Joãozinho, nestes últimos tempos nem abro a televisão que ele me instalou cá em casa. Ou então só abro muito à noite, para ver aquelas séries de polícias e ladrões, e assassinados, sobretudo aquela de um detetive vesgo, com uma gabardina que nunca deve ter sido lavada, charuto a cair da boca, mas que adivinha tudo...
Agora, estar sempre a ouvir noticiários, e quantos morreram, e quantos vão morrer hoje, e quantos morrem amanhã , e onde é que estão a morrer mais, e onde é que estão a morrer menos... isso é que nunca. Dava-me um ataque de coração e morria logo ali. Porque não é só do bicho que se morre.
Bom, vou mesmo arriscar. Vou buscar a minha bengala que sempre me ajuda a descer as escadas, espero que os meus fantasmas estejam interessadíssimos a ver os programas da tarde da televisão e vou até ao café.
Há quantos anos não entras num café, Socorro? É melhor nem fazer contas.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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