PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
28-07-2020
Para mim todas as memórias são feitas de cheiros.
Todos os locais, todos os sentimentos, todas as pessoas, todos os acontecimentos, têm ao recordá-los um aroma próprio.
Talvez seja por isso que quando saio à porta inspiro profundamente, tentando viajar no tempo e encontrar aquela miúda que riu, chorou, foi feliz e infeliz, nesta mesma casa, nesta mesma rua.
Só que agora a memória tem uma cambiante turva, talvez por causa da máscara que não me deixa absorver livremente os cheiros da calçada, das casas e do ar que é diferente de todos os outros.
Mas mesmo por entre esta espécie de camuflada mordaça, consigo ainda revisitar um bocadinho da minha infância.
Durante anos não quis aproximar-me sequer deste bairro.
Tudo aqui ficara demasiado pesado e triste depois daquele Dezembro de 73.
Da miúda risonha e despreocupada, tinham arrancado o riso e a leveza e deixado no seu lugar, um cinzento frio com cheiro a escape de carro.
Do carro que levara o meu pai durante a noite e que não voltara mais.
Mas o tempo é um bálsamo se tivermos a sorte de recomeçar de novo. E eu tive.
O homem com quem minha mãe casou naquele Verão quente de 75, foi o responsável pelo retorno do cheiro a Primavera, a terra molhada depois do imenso calor, a maresia.
São esses os aromas que associo a esse homem bom que nunca quis que lhe chamasse pai: - “Pai há só um e nunca o deves esquecer!" – dizia, mas que fazia questão que o tratasse por Padrinho, que me ensinou a andar de bicicleta e patins, que insistiu em que tivesse uma educação superior, que aprendesse línguas e que me preparasse para ser independente.
Um homem que fez sorrir e cantar de novo a minha mãe e que até ao fim andou com ela de mão dada para todo o lado, eternos namorados.
Morreu cedo demais, como acontece a todos os homens bons.
Deus, seja ele qual for, deixa os piores para o fim. Pudera. Tem que os aturar toda a eternidade!
Pelo menos é o que dizem.
Quando morreu, o Padrinho Francisco, deixou uma pequena fortuna à minha mãe mas nem isso foi o suficiente para que ela encontrasse a coragem de seguir na vida sem ele.
Pouco mais de um ano depois, juntou-se-lhe algures na eternidade.
Vi-me assim triplamente órfã.
Com uma licenciatura em Línguas e Literatura Modernas e já no sistema de ensino, de repente a casa deles pesou-me na alma.
Não podia adiar por mais tempo o corte umbilical e isso implicava sair dali.
Porém não é fácil para uma mulher (ou um homem certamente) sem família e sem raízes ir para um local completamente desconhecido.
Durante toda a minha vida, o Matias tinha sido uma presença assídua.
Eu lembrava-me vagamente dele, sabia que fora nosso vizinho naquela que era a minha vida antes da “noite”.
Mas mesmo estando nós a viver na “outra margem”, o Matias continuava a visitar-nos praticamente todas as semanas.
Era assim como um tio que vivia em Lisboa.
Aliás ele e o meu Padrinho eram unha com carne e passavam horas em conversas que mudariam o Mundo se alguém as ouvisse.
Separados pelo Tejo, acompanhamos os acontecimentos de vida um do outro.
Vivemos o divórcio dele e a viuvez da minha mãe.
A minha entrada na vida profissional com quase um estágio de lecionação dado por uma amiga do Matias.
Foi dele o ombro onde chorei as lágrimas da minhas completa orfandade e foi ele que um dia me ligou a dizer que a casa da porteira que fora a minha, tinha sido reconvertida e se encontrava à venda.
Foi uma compra de impulso. Ou talvez tivesse sido apenas uma coisa karmica.
O que é certo é que meia dúzia de meses depois, voltava ao 69 da minha infância, disposta a encontrar todos os fantasmas e sobretudo a fazer justiça.
Karma é de facto a bitch!!!
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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