PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
29-07-2020
Ai, eu já não suporto isto… Esta máscara, que me faz transpirar, que muda as feições e a voz das pessoas, que nos faz parecer outros, que faz com que ninguém nos conheça, nem nós a eles.
Ontem, estava eu no café e vi alguém dirigir-se a mim, com ar furioso (os olhos é a única coisa que a gente vê…) e a berrar:
- “Ó pá, mas tu já viste isto? Esta gente não sabe o que anda a fazer… E daqui ao Parque das Nações, ainda é um esticão”…
Eu ia mesmo responder: “mas você conhece-me de algum lado?” (se fosse a minha Perpétua diria: “mas você andou comigo na modista?”).
Quando descobri que era o meu primo Jesualdo, que mora a duas ruas de mim… Ainda bem que não disse nada, senão ele ainda ficava mais furioso, coitado.
Tentei acalmá-lo, ofereci-lhe um café e ele sentou-se à mesa comigo, com as devidas distâncias e só sem máscaras enquanto bebíamos o café.
Depois disso respirou fundo e lá me contou o que tinha acontecido.
Por causa do vírus, a renovação dos nossos documentos faz-se de maneira diferente.
E recebera uma carta para ir levantar o Cartão de Cidadão àquele lugar onde agora funcionam os tribunais e essas coisas, no Parque das Nações.
Aqui que ninguém nos ouve, devo confessar que esse é o sítio de Lisboa que eu mais odeio. No tempo da Expo, passava lá os dias inteiros, aquilo era lindo, e eu, a Perpétua e as miúdas, nem esperávamos tempo nenhum nas filas para entrar porque, se bem se recordam, quem levava crianças passava à frente.
Mas depois que aquilo se transformou em bairro, é horrível.
Nunca me entendo com aquelas ruas, nem percebo onde elas vão dar.
E o que é que tinha acontecido ao Jesualdo?
Assim que lá chegou e foi chamado, avisou logo a funcionária:
- “Olhe que eu não tenho impressões digitais…”
Mas ela devia estar com os azeites, ou era do calor da máscara, encolheu os ombros e disse:
- “Oh meu Deus, aquilo que os ignorantes deste país pensam que sabem… Não tem impressões digitais… Pois não… Tem lá agora…”
À quinta máquina onde enfiou o dedo do Jesualdo, sem resultados, já não tinha tantas certezas…
- “Pois… Realmente… Coisa estranha… Nunca me tinha acontecido…”
Resumindo e concluindo, o Jesualdo foi mandado embora, porque era preciso fazer outro tipo de cartão e que regressasse quando recebesse nova convocatória: “praí daqui a uma semanita”.
- “E daqui a uma semana” - berrava o Jesualdo: - “lá tenho eu de voltar, mais despesas no transporte para lá e no transporte para cá… Bastava ela ter olhado para o cartão antigo e acreditar no que eu lhe dizia..”
Fiquei a olhar para ele, sem dizer palavra. Depois lá consegui murmurar:
- “Ó... ó Jesualdo...
- “Sim ?…”
- “Tu… tu não tens impressões digitais?…”
- “Não.”
- “ A sério?”
- “A sério… Mau… Já estás como a mulher do Tribunal?
- “ Então… e se tu matas um homem?”
Bom, tive de desatar a correr e voltar rapidamente para casa, senão o homem que o Jesualdo matava era eu.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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