José Carlos Malato faz bem em bater nos que lhe batem
1. José Carlos Malato é um aparente paradoxo.
Por um lado, é um apresentador que trata as pessoas com doçura, que é bom para elas, que as olha com surpresa e um genuíno espanto pelo bom que conseguem, mesmo que seja um bom muito pequenino ou muito relativo.
É talvez a pessoa que melhor o faz em televisão.
Com cultura, com humanidade e com carinho pelos outros.
É um tipo que não é plástico, que ri como as pessoas normais riem, que nos faz as perguntas que as pessoas na vida nos podiam perguntar, que nos ajuda a compreender oferecendo-nos contexto e proximidade, apesar de existir para a maioria de nós apenas dentro da televisão.
Mas, por outro lado, Malato é violento quando não está a trabalhar.
Nas suas redes sociais deixa sempre troco a quem o crítica, não admite que lhe toquem em zonas sensíveis, que o tentem humilhar, que façam humor à conta das suas falhas, fragilidades ou contradições.
Aparentemente são duas pessoas numa: terno e bonito quando está a trabalhar.
Mas depois, na solidão de quatro paredes, matutando sobre o que dele dizem, é agressivo, talvez até desajustado na violência com que reage.
2. Como explicar isto?
Tantas vezes torna-se difícil entender certos comportamentos, mas neste caso não me parece que seja um tema complexo.
As suas reações são mais do que compreensíveis.
Vemo-lo nas duas ou três entrevistas em que aceitou falar de si e dos seus abismos e tudo passa a fazer sentido.
O José Carlos Malato era uma criança e foi um jovem, mas na escola nunca foi tratado como um miúdo normal.
Foi humilhado.
Os colegas faziam-lhe esperas, ameaçavam-no, obrigavam-no a ir à baliza e rematavam várias bolas ao mesmo tempo para lhe acertar.
E gritavam-lhe no recreio...
Gordo.
Paneleiro.
Nojento.
Nos autocarros apalpavam-no.
Ao chegar à escola, nos períodos mais críticos, vomitava de medo.
3. O José Carlos Malato contou isto.
E era Testemunha de Jeová, o que piorava as coisas.
Houve um tempo em que se punha em frente ao espelho para treinar os gestos, para não ser uma menina, para ser um rapaz forte, chegou a treinar ao espelho movimentos de jogador de futebol ou a beijar meninas para que os rapazes vissem que ele era normal.
Noutras vezes, imaginava que podia ser o Batman ou o Homem Aranha, imaginava que um dia, por um qualquer milagre, iria tirar a roupa e rebentar de porrada aqueles atrasados mentais com o seu fato de Super-Herói.
Anos e anos e anos nisto.
Anos e anos a levar porrada, a ser escarrado e gozado.
E a ir para os braços da irmã; era a única que sabia.
Anos e anos a passar-lhe pela cabeça que se calhar o melhor era ir embora, partir daqui e levar a culpa e a vergonha.
4. Não o fez.
Tornou-se adulto.
Abriu caminhos, tornou-se uma estrela, uma das estrelas mais populares em Portugal.
Teve a sua pequena vingança, mas o que sofreu continua a ser o que sofreu, continua a estar dentro do que é, não tenho a mais pequena dúvida disso.
E o que teve de assumir foi inimaginável.
Um pai e uma mãe conservadores que ele não desejava magoar, um pai e uma mãe que viviam na ideia de que só alguém sem culpa, sem mácula se podia salvar no dia do Juízo Final. Um pai e uma mãe que não compreenderiam que o seu único filho homem fosse um pecador aos olhos do seu Deus, um filho perdido.
Mas o Malato assumiu com coragem.
E para mim deixou de existir assunto, paradoxo, ruído ou contradição.
O Malato é um dos meus apresentadores preferidos, um tipo que eu confiaria em absoluto se fosse diretor de um canal qualquer, a violência com que reage só pode incomodar quem não conhece o seu contexto.
Afinal, está apenas a ser autêntico.
Depois de uma vida de humilhações é mais do que natural que não queira ser maltratado. Depois de tantos anos em silêncio, depois de tanta angústia, depois de tudo o que passou, o José Carlos Malato decidiu não calar mais.
É injusto no que escreve e no modo como reage?
Algumas vezes sim, mas mais vale sê-lo do que ficar calado.
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