PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Tivessem-me perguntado
que eu contava-lhes.
Mas como têm a mania de
que passo a vida na calhandrice (como se não tivesse mais que fazer, senhores,
que tenho sido sempre uma moira de trabalho!), nem me atrevi a abrir a janela.
Se alguma coisa sei é porque me contam, que eu cá não pergunto nem me meto na
vida de ninguém. Deve ser este meu ar. O meu Isidoro até costuma dizer que se
eu fosse homem dava um bom padre: todos se confessam comigo. É sinal que sou
pessoa de fiar e que a minha boca é um túmulo, não é verdade?
Mas fiquei a ouvi-las,
com a cortina aberta para ver de quem se tratava.
Era a Rosa sim senhora, ora que admiração. A Rosa Maria para sermos exatos, que isto de nome de batismo não se corta pela metade. Já eu sou Perpétua sem mais e o meu Isidoro também não tem outro nome.
Mas quanto à gaiata, pois
que aqui nasceu e aqui se fez menina.
Filha única, lembro-me
dela sempre um bocadinho mal encarada. Os miúdos não gostavam muito de a
convidar para as suas brincadeiras. Geralmente acabavam com ela aos pontapés ou
aos murros, numa grande chinfrineira de gritos e ameaças entre crianças e
graúdos.
As minhas nunca a
suportaram. Também, ela só tinha brincadeiras de Maria Rapaz e não se
interessava por casinhas e bonecas. Policias e ladrões, isso sim, com ela
sempre do lado dos ladrões, fugindo e batendo na “polícia” como qualquer rufia.
A “coisa” deve ter-lhe ficado do pai, um belo rapagão que trabalhava como tipógrafo lá pró Bairro Alto. Faziam uma família muito bonita, essa é a verdade. A mãe lavava as escadas, recolhia o correio e atendia na portaria do prédio ali ao cimo da rua. Eram tempos difíceis e uma porteira tinha apenas a casa minúscula como paga. Por isso fazia uns biscates, uns arranjos de roupa, que modista nunca foi.
Modista é coisa bem diferente
de costureira. Modista fui eu toda a vida, e de gente fina!
Onde é que eu ia? Ah sim,
no belo rapagão, que isto uma pessoa pode ser virtuosa, fiel e temente a Deus,
mas não é cega e os olhos também comem e por aí não vem pecado. Nem em
pensamento!
O que se falou na altura
foi que ele, Francisco Mateus, de sua graça, seria do contra, e uma bela noite,
quando vinha do trabalho, encontrou a PIDE à porta.
Que eles estavam todos
identificados! Ora quem, a PIDE… sabiam mais a dormir que agora estes polícias
todos acordados. Estes e os que se veem na televisão. E sem grandes
aparelhómetros!
A verdade, verdadinha, é
que por toda a parte havia “bufos”, gente que era paga para informar quem era
do partido. Qual partido? Ó senhores, pois se na altura só havia a União
Nacional, o partido era o Comunista, está bem de ver.
Eu cá não sei se o homem
era ou não comunista, se bem que a gente dos jornais tinha fama de ser toda
contra o regime e os tipógrafos não fugiam à regra. Certo, certo, é que o
enjaularam.
A Conceição passou um mau bocado, coitada. Até ameaçaram tirar-lhe o lugar de porteira. Ninguém queria ter nada a ver com quem era inimigo da Nação. Mas depois, a vizinhança lá do prédio teve pena, uma mulher sozinha com uma filha ainda pequena, ainda para mais em vésperas do Natal…
Entretanto, dá-se o 25 de
Abril. Muita alegria, muita gente aos vivas à liberdade, muitos cravos, enfim o
que se sabe.
Logo no dia a seguir são
libertados os presos políticos no meio duma manifestação de gente que esperava
à porta da prisão de Caxias. Sai esse, sai aquele, mais a outra (que isto
também havia mulheres ao barulho, ah pois! A ditadura nesse aspeto era muito
democrática: quem era contra ia dentro, fosse homem, mulher, preto, branco,
azul às riscas). Do Francisco nada.
Veio a saber-se depois
que tinha morrido dois dias antes, num interrogatório de “rotina”.
Há gente que nasce com uma estrela mazinha. Vejam lá vocês o azar do pobre coitado. Mais um par de horas e teria voltado para casa pelo seu próprio pé.
A Conceição e a filha
ainda moraram aqui mais uns anos até que, entretanto, a mãe voltou a casar e
foram viver prá outra banda.
Durante muito tempo não
se ouviu nem se viu uma ou outra por estes lados. Soube por alguém que a miúda
tinha entrado na faculdade e estava a dar aulas não sei aonde.
Há coisa duns bons anos,
quem havia de comprar a casita, que entretanto deixou de ser da porteira (ele há lá agora
porteiras!) e se transformou num T1? Pois claro, a Rosa Maria!
Não sei como se arranjou,
que isto aqui na rua qualquer cochicho é um balúrdio que Deus me livre, e o
ordenado de professor não é nada por aí além. Bem o sei eu que tenho duas e
vejo o que passam…
O certo é que comprou a
casa e aqui se instalou já vai para, se a memória não me engana, mais de dez
anos. Ai vai, vai.
Olha, foi mais ou menos
na mesma altura em que apareceu o homem morto mesmo aqui na soleira do prédio.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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