PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
30-04-2020
Irra! Toda a manhã à
janela a ver quem passava (ninguém, pois claro,) e agora que ia fazer uma curta
sesta é que começa esta algazarra na rua. Deixa cá ver o que é, não
vá ser coisa séria e passar-me ao lado! Era só o que faltava!
Na rua não há ninguém,
mas está tudo à janela! E a cantar a Grândola!
Ai minha nossa Senhora,
querem lá ver que temos outra revolução?! Mas que grande
algazarra! E tudo desafinado, e uns mais à frente e outros a começar… Olha, aí está uma coisa que esta rua nunca teve: um maestro! E bem falta fazia agora! Mas que foi que lhes deu?
Espera lá… isto que dia
é hoje, Maria do Socorro? Sim, que com esta coisa de estarmos todos dentro de
quatro paredes os dias são todos Domingo! Antes, as rotinas de quem passava na rua iam marcando o calendário:
quando o vizinho da frente levava os miúdos, ao fim do dia, eu sabia que era
sexta feira, o rapaz que trazia as compras cá a casa (e ainda traz, só que
agora é quando calha) vinha sempre à segunda… com tudo isto destrambelhado
uma pessoa nem sabe às quantas anda.
Resolvi perguntar. Isto
porque eu cá sou assim: não sei, pergunto e acabou-se. Virei-me para cima e
“ - psst, psst, ó vizinho...”.
Ele que cantava (mal, tão mal, valha-lhe Deus!) a
plenos pulmões, não me deu atenção.
Mas isto são muitos anos à janela. Fui lá
dentro, peguei numa mola da roupa e atirei-lha. Não é para me gabar, mas sempre
tive muito boa pontaria. Se bem que não foi minha intenção acertar-lhe em cheio
no olho. Calhou! Mas o efeito foi o que se queria
“ - Que foi? Por pouco não
me cega! ”.
Que exagero. Homens!!!
Séculos que passem e serão sempre assim. Uns piegas! Fiz-me de velha mansa,
que a vida também me ensinou que às vezes mais vale fazermo-nos de tontas e
parvas.
“ - O Dr. Vizinho desculpe,
mas que é isto? ”
“ - Que há-de ser? É o 25 de Abril! ”
“ - Outra vez??? ”
“ - Não
senhora, é a comemoração. Como não podemos descer a Avenida, cantamos a
Grândola à janela”
Ah… pois, está bem, faz
sentido!
Fiquei ali até aos
últimos vivas a Portugal, à liberdade, ao 25 de Abril. Depois as janelas
voltaram a fechar-se e ficou tudo em silêncio como antes.
Lembrei-me dum programa
onde perguntavam se nos lembrávamos onde estávamos no 25 de Abril. Eu estava aqui, nesta
mesma casa. Tinha enviuvado vai pouco tempo, e os patrões disseram que se eu
quisesse, podia voltar a ser criada interna e ocupar o meu quartinho de
solteira. Embora gostasse muito da minha casinha, disse logo que sim. Afinal, eles eram a única família que tinha em Lisboa e a de Fonte Boa de Cima estava
longe demais para ser companhia. A bem da verdade, o que eu tinha era medo de
ficar de noite sozinha. Dei por mim a dormir de luz acesa e rádio ligado muito
baixinho. Era um ror de dinheiro em eletricidade. Voltei.
Lembro-me que na noite de 24, os senhores tinham ido ao Coliseu e voltaram tarde. Eu tinha por costume (e obrigação, embora nunca me tivessem dito nada) de ficar a pé até que chegassem, não fosse precisarem de alguma coisa... Nessas noites, aproveitava
para tomar um calicezinho de vinho fino e ver um bocadinho de televisão na
sala, sempre muito atenta aos passos na escada.
Mas nessa noite eu estava
estafadinha de todo. Tinha sido dia de polir as pratas e lavar os vidros e,
como se não bastasse, o Sr. Engenheiro tinha-me pedido que fizesse um arroz
doce para o almoço, já que iam jantar “ - a uma porcaria dum restaurante que o
Seabra escolheu e, já sei que vai ser uma barrigada de fome como de costume! ”. O
Sr. Engenheiro pelava-se pelo meu arroz doce! Às vezes, parecia um catraio a
entrar pela cozinha, a cheirar o ar e a lamber a colher de pau, quando pensava
que eu não estava a ver. E eu fingia. Sim, que não ficava bem a um homem daquela
posição, andar a rapar o tacho do arroz, mesmo que fosse doce!
Enfim, dizia eu que
estava moída e por isso, deitei-me vestida sobre a cama com um olho aberto outro
fechado e rádio baixinho. Passaram a canção do festival e cantarolei um
bocadinho. Gostava muito do Paulo de Carvalho, e achei, mais uma vez, que lá
fora nos tinham roubado, na Eurovisão. Então não era bem mais bonita o “Depois
do Adeus “ do que aquela coisa cantada por quatro palhaços vestidos com umas
farpelas que nem no Carnaval?
Os senhores chegaram
ainda não era meia noite, e eu pude ir finalmente deitar-me. Estava quase a
pegar no sono quando começou a tocar a Grândola, que era uma música que eu
nunca tinha ouvido na minha vida.
Chamou-me a atenção, porque parecia ter gente a marchar e tinha uma
letra linda. Assim a lembrar as modinhas da minha terra.
Nisto toca o telefone,
sinto o sr. Engenheiro atender e a desatar a gritar:
“ - Não me digas, não me
digas! ”
Peguei no robe a pensar
que era desgraça pela certa. Quem sabe se outro terramoto como o de alguns anos,
que levou toda a gente descomposta para a rua (muitas poucas vergonhas se
descobriram nessa noite, benza-me Deus. Até o polícia que vivia na rua de baixo
apareceu na nossa, em coirinho como a mãe o pôs ao Mundo. Nunca mais lhe pus a
vista em cima. E ainda bem!).
Na sala estava já a
senhora, e o Sr. Engenheiro pegou em nós as duas e começou a dançar e a rir
muito e a gritar:
“ - É desta, é desta. Vem aí a Liberdade ”.
Eu não sabia quem era a
Liberdade, mas devia ser alguém que não viam há muito tempo e que chegava de
longe, para estarem assim tão alegres...
Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza.
Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.
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