PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza, durante a quarentena da Pandemia da Covid-19.
12-04-2020
Toca a campainha e volto á varanda para ver quem é.
O prédio é velho e não tem intercomunicador.
Pelo menos tem fechadura elétrica que funciona mês sim mês não. Felizmente que este é mês sim!
Quando para aqui vim ainda só tinha uma “ mãozinha” como batente.
Uma pancada era o primeiro direito, uma pancada e duas repenicadas era para o primeiro esquerdo e por aí fora.
“ - É o jantar Matias.”
Sorri-lhe “ – Já desço!”. Abri-lhe o trinco da porta da rua. Sabia que ia encontrar um saco de verga no
patamar da entrada e ela já do outro lado da porta de vidro. Como noutros
tempos, tempos mais negros.
“ - Para que te foste
incomodar rapariga? Ainda tenho restos de anteontem e até de Domingo
congelados”. As vozes mais altas para
ultrapassarem a espessura do vidro, ecoavam na rua deserta.
“ - Isso, põe-te a dieta
põe! É que já quase que nem pele tens sobre os ossos…”
Pus a mão no vidro, ela colocou a dela do outro lado. Como noutros tempos, tempos mais negros. Tempos que mudaram as nossas vidas: a minha, já homem feito e a dela menina de colo, órfã de pai que não resistiu à violência “deles”.
Ficámos um bocadinho
assim.
“ - Até amanhã Matias. Cuida-te”;
“ – Até amanhã Rosa. Tu também,
miúda”.
Subi as escadas a
matutar. Três filhos, três e só aquela miúda se importava comigo. Ah se ela
soubesse… Não Matias tu não podes ter a certeza. Eram tempos de dor e a dor
confunde as cabeças.
Voltei à varanda para mais um cigarro e instintivamente fiz o que sempre faço: certifico-me que estou debaixo do alpendre. Rio sozinho. Será que estes putos sabem o que foi a Lei da Telha? Alguém lhes terá contado?
Agora… pois se a
maioria pouco ou nada sabe do que foi a revolução, do que aconteceu antes e
depois, quanto mais das manigâncias que um gajo fazia para dar a volta ao
sistema.
Ainda me lembro do dia em
que todo o jornal saiu apenas com receitas de culinária!!!
Pois se os gajos da
censura tinham cortado tudo, se não se podia contar nada nem reportar coisa
nenhuma, olha pelo menos o “ Bacalhau com grão” não devia colocar
problema.
O problema foi conseguir
receitas para publicar. Naquele tempo os jornais eram, na sua grande maioria,
ainda terreno masculino, e macho que era macho, nem sabia onde ficava a cozinha,
quanto mais cozinhar.
Assim que toca a
telefonar à mãe, à tia, às avós, a pedir receitas. E elas muito espantadas:
“ - Mas porque queres tu saber como se fazem farófias? ’” ; “ - Ai meu rico
filho, deixa estar que no domingo faço-te um cabritinho assado como tu gostas…” “ - Para o leite creme ficar bom tens que estar sempre a mexê-lo. Mas
cuidado, sempre para o mesmo lado, se não deslaça!”.
E a malta a tomar notas
que nem doidos que era preciso fechar o jornal e nem notícias nem receitas.
Alguém se lembrou de ir buscar o Pantagruel e copiar. Aí foi a indignação
geral: uma coisa era um grito de rebelião contra o lápis azul (azul sim, que a
censura nem no que cortava ou alterava queria ver vermelho) outra era plágio.
Que o jornal saísse só com capa e contra capa se fosse preciso, mas que ninguém
dissesse que tínhamos copiado fosse o que fosse. Ingenuidade da juventude.
Como se as receitas das nossas mães, santas e do lar, não fossem elas também
cópia de livros ou revistas femininas. Enfim…
Mas voltando a esta
minha mania de olhar o pequeno alpendre da varanda.
Durante o Estado Novo
saiu uma lei ainda mais estapafúrdia do que o costume. Era proibido o uso de
isqueiro na via pública. A medida era óbvia, tratava-se de proteger a
Fosforeira Nacional e o latifúndio de mais um dos que comiam à mesa do poder. Para se poder ter e usar
um isqueiro era preciso uma licença. Assim como se fosse para ter um revólver. A lei dizia expressamente
que só se podia usar “ debaixo de telha”
sob pena de avultada multa.
Ora a malta aprendera à
custa de pancada e de muitos anos, a esgueirar-se pelos pingos da ditadura. E
mesmo naqueles tempos cinzentos como chumbo, tínhamos humor. Está bem de ver que
começámos a andar com uma telha no bolso. Não era prático mas dava um gozo bestial acender um cigarro na chama dum isqueiro, muitas vezes com a ajuda dum amigo que segurava a telha sobre a nossa cabeça, outras fazendo verdadeiros exercícios de contorcionismo, nas barbas da bófia.
É por isso que olho para
este alpendre de cada vez que acendo um cigarro. Como me sabe bem.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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