PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19
16-04-2020
16-04-2020
Tenho que ganhar coragem e pôr-me à máquina outra vez, que esta almofada da janela está mais dura que pedra!
Já perdi a conta a
quantas fiz nestes anos todos. Sim, que eu não me ponho à janela de qualquer
maneira. Sou uma profissional. Ai valha-me Deus que isto soou tão mal.
Queria eu dizer que gosto de estar confortável a ver quem passa. Agora, está bem de ver, não passa vivalma, mas enfim. Até mandei fazer uma cadeira com as pernas à medida, ao marceneiro da rua de cima, que agora não recordo o nome. Do homem, que da rua sei bem qual é!!
Isto uma pessoa tem mais uns anos do que a conta e já todos pensam que está trolaró!!! O mal de se ter muitos anos, além dos achaques e dessas coisas todas, é ver ir uns e outros. Aqui entre nós, até com um certo alívio, a não ser quando são novinhos. Ai, aí faz-me muita impressão e pergunto mesmo a Deus (ou seja lá o que for que está acima da gente) porque não me levou a mim que já cá ando a descontar ao crédito?
Mas dizia eu que não me
ponho à janela de qualquer maneira. Sentada nesta cadeira de pernas altas “ –
Um dia destes cai e depois parte a anca e quero ver como é” ralha-me o meu “
neto “ de cada vez que telefona. Caio lá agora! Tantos anos empoleirada para
cair no fim da vida, era só o que faltava. Manias e preocupações de quem vê
muita miséria, meu rico filho…
Pois não senhora. Ele é
almofada no parapeito, cadeira alta e.. pó de arroz na cara. Para que é que uma velha como eu põe pó de arroz para ir para a janela? Olha nem sei! Sempre gostei muito das caixas que a minha senhora tinha no pixeché com umas bordas muito grandes. Um dia por graça, ela pôs-me um bocadinho de pó de arroz na cara.
“ – Assim Socorro, vês?
Uma senhora deve estar sempre arranjada porque nunca sabe o que a espera”
“ – Ó
minha senhora e eu lá sou senhora?”
“ – Ser senhora não tem a ver com ser rica,
bonita ou bem vestida. Ser senhora é ter coração e cabeça. Muita cabeça” dizia
ela.
Pois sim. Eu bem sabia o
que me esperava. O tanque ou as panelas. Para que queria eu embonecar-me?
Mas depois, quando morreu
e me vi de repente com esta casa e tanto dinheiro que dava para comprar a Fonte
Boa de Cima todinha, decidi que era a
minha vez de ser senhora.
De maneira que… olha… pó de arroz e janelinha.
A propósito, agora reparo: aquela não é a Amparo? É ela pois. Deve ir ao Poupaqui, (Aldrabão. Não me conformo com o maldito do nome, rais partam!). Vai arrastando a perna e amparada por um dos filhos. Coitada. Não lhe bastava a vida miserável que levou para ainda ter tido um AVC aqui há uns anos que a deixou meio tolhida dum lado e com a fala entremelada. Quem lhe vale são os filhos. Quatro ou cinco, nem sei bem, que aquele desgraçado com quem casou para isso servia.
Como se chamava o
estupor, Maria do Socorro? Deixa cá ver, qualquer coisa como Barrabás… não
esse era o outro que foi solto em vez do Cristo e que também era uma boa
peça… este era… ai que não me vem à memória… Tinha mau vinho e dava-lhe tareia de criar bicho. Toda a rua sabia, toda a rua tinha pena da mulher, mas naquele tempo era assim. Homem que não batesse na mulher não era homem nem era nada.
Que a mim o Faustino
nunca me levantou a mão!
A minha senhora chegou a
dizer-me várias vezes “ – Se algum dia esse marmanjo te bater tu vens logo
contar-me que eu encarrego-me dele”. De vez em quando penso que a minha senhora
era do reviralho! Tinha umas ideias muito modernas para a época. Mais que o
Senhor Engenheiro. Mas também esse tinha mais em que pensar.
Voltando à Amparo. Aquilo era uma dor de alma! Até aqui cinco casas de distância se ouvia o choro dos miúdos pequenitos e os insultos do Gervásio (era Gervásio, agora me lembro). Dela nem um som. Só uma noite em que o malandro a pôs na rua em trajes menores, é que se a ouviu gritar. Que a deixasse entrar, que não fizesse mal aos meninos, que a deixasse ir buscá-los. Muita gente se assomou à janela nessa noite. Era Inverno e ela ali em combinação a bater à porta. Veio o guarda noturno e tudo. Mas em vez de chamar a polícia e obrigar o marmanjo a abrir a porta, mandou-a fazer pouco barulho que as pessoas de bem queriam dormir. Ela enroscou-se como pode no vão da porta e ali ficou. Não sei se alguém a recolheu. Eu também vim para dentro porque “ entre marido e mulher não se mete colher”. Agora seria diferente graças a Deus, mas naquele tempo era assim.
Um dia a polícia apareceu
com grande aparato aqui na rua e parou-lhe à porta. Eu debrucei-me um pouco
mais e pensei: “ - É desta que levam aquele patife preso!”. Qual não foi o meu
espanto quando vi sair lá de dentro algemada e com dois policias, a pobre da
Amparo.
Vim depois a saber na drogaria, pela menina Feliciana que trabalhava para o sr. Doutor que tinha um posto qualquer lá num ministério e que até diziam ter muito boas relações com o Sr. Chefe do Governo, que a Amparo teria morto o marido com uma frigideira na cabeça. Pelos vistos ele começou a bater-lhe (olha a novidade…) e aos filhos, e ela, que estava a fritar uns carapaus para a ceia, não esteve com mais aquelas e mandou-lhe com a frigideira ao toutiço.
Abençoada! Ou melhor
amaldiçoada que por azar matou-o e passou dez anos na prisão. Dez, vejam bem,
pobre criatura.
Os filhos, todos rapazes,
foram para a Casa do Gaiato e ali se fizeram homens. Bons homens. Mesmo tendo
crescido sem mãe e tendo visto o que viram, não ficaram maus, não senhor. Pelo
contrário. Um deles se não me engano até é advogado. Os outros não sei bem. Mas
que nunca mais a deixaram depois que ela saiu da cadeia, não.
Dez anos! Virgem Maria,
que tempos… que tempos…
Bom mas deixa-me lá ir tratar desta bendita almofada que as artroses já se estão a queixar. Na volta só lhe tiro o enchimento e ponho outro. Assim escuso de voltar à máquina. É que dessa então é que se queixam não só as artroses como os bicos de papagaio e tudo o resto.
Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.
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