quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Que Mundo é este?

"Pluma Caprichosa" - A Suicidade da Sociedade  - Clara Ferreira Alves

Sem o voyeurismo que alimenta as massas, sem o voyeurismo da intriga e da devassa da intimidade, nada disto teria acontecido

PARAFRASEANDO MARK TWAIN, sinto-me a pessoa com juízo na comunidade de loucos.
Dois radialistas australianos resolveram pregar uma partida e telefonar para o hospital onde Kate Middleton estava internada, fazendo-se passar pelo príncipe Carlos e pela rainha Isabel II.
Por razões não esclarecidas, a chamada foi passada à enfermeira que cuidava da duquesa grávida. E a enfermeira deu pormenores do estado. Este estado não era segredo, pelo contrário.
Dias seguidos, jornais, televisões e plataformas digitais esgotaram o tema da gravidez real e dos vómitos matinais da duquesa de Cambridge. Com uma insistência doentia numa notícia irrelevante, os “órgãos da comunicação social” e a inteligência bovina que demonstram, pastaram nas verdes pradarias da realeza. A CNN chegou a fazer uma reportagem sobre os “custos de ter um bebé”, pondo um preço em dólares na maternidade e na paternidade. Ou na propagação da espécie. Como se este preço fosse o mesmo no caso de um membro da família real ou de uma família do Bangladesh. O problema é justamente este. A família miserável do Bangladesh, a família assassinada da Síria, a família decepada no México, não têm interesse para os noticiários do novo realismo social. Não são celebridades.
Um bebé real é um bónus nas cadeias de informação à míngua de jornalismo, e umbebé real tanto pode ser o bebé Beckam como o bebé Cambridge, não interessa. O que interessa é a celebridade dos pais.
Kate Middleton vê-se já como se viu Lady Di, o sujeito e o objeto de uma atenção doentia. As hipóteses de a atenção acabar em tragédia aumentam.
A enfermeira que atendeu o telefonema dos brincalhões, suicidou-se. Nada sabemos do que se passou no hospital antes deste suicídio, e o hospital, sendo um hospital de milionários e da realeza, sacudiu a água do capote, chegando a dizer que “tinha apoiado” a enfermeira, dias depois de ter dito que iria revolucionar a segurança dentro do hospital, controlar o atendimento telefónico e impedir erros semelhantes.
É de esperar que a enfermeira não deva ter-se sentido muito apoiada depois do seu equívoco. Para a reputação do hospital, foi um erro imperdoável. É duvidoso que a enfermeira, ao divulgar dados da doente, não tenha sido admoestada ou até ameaçada de despedimento. Mesmo assim, todos concordamos que nada disto é causa de suicídio para uma mãe de família com marido e filhos, amigos, socialmente integrada. Se fosse despedida seria readmitida noutro lugar. Se não fosse, a vida continuaria como dantes. Avisada. Tratando doentes menos reais. A identidade da enfermeira não foi divulgada na altura (só depois da morte), a duquesa não tinha uma doença grave, nenhum segredo de Estado ou traição à pátria estavam em causa, não havia crime ou negligência. Apenas inocência.
Os autores da partida exageraram no triunfo após terem enganado o hospital mas isso não faz deles assassinos ou psicopatas. São também vítimas. Vítimas da raiva e do ódio do mundo indignado, das torrentes de insultos nas redes sociais, das ameaças de morte. Ficaram sem emprego. Numa entrevista à televisão australiana, disseram lacrimejando o que qualquer pessoa sensata sabe, que nunca lhes passou pela cabeça que aquilo fosse mais do que uma brincadeira idiota.
Nestas coisas, o povinho é impiedosamente moralista e a multidão anónima adora encontrar bodes expiatórios onde possa aliviar a culpa. Qual culpa? A do voyeurismo. Porque sem o voyeurismo que alimenta as massas e a sua superpop culture, sem o voyeurismo da intriga e da devassa da intimidade, nada disto teria acontecido.
Culpar dois inocentes de uma morte com a qual só indiretamente têm a ver, por mais estúpida ou odiosa que seja a partida, é o princípio do linchamento. A contemporaneidade que consome notícias e sentimentos não resiste a um linchamento, com a mórbida cumplicidade dos jornais e televisões. É triste que o jornalismo tenha chegado a isto. E esqueça e oculte verdadeiros crimes contra a humanidade.
A enfermeira suicidou-se por uma razão menor, uma inversão de valores que preside ao moralismo empacotado.
Devia ter resistido e devia ter pensado que deixava órfãos.
Uma pessoa estável e razoável, com uma família sólida e uma vida útil, não deve matar-se por causa disto.
Um hospital não pode vir dizer que “apoiou” uma pessoa que se matou.
Os australianos, na sua idiotice, são os últimos a quem se podem pedir razões que existem dentro do suicida.
Os australianos são causalidade remota. São também os mais fáceis culpados.
Tudo, hoje, tem de ser fácil. A internet e o seu fluxo de informação exultam com a irracionalidade, a desumanização e a negação da lógica. Criam e ampliam o drama que nunca devia ter existido.
Como disse Antonin Artaud de Van Gogh, a enfermeira foi uma “suicidada da sociedade”.

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