quinta-feira, 24 de setembro de 2020

44ª Crónica: "Ah, isto agora é outra coisa!”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

20-09-2020


Ah, isto agora é outra coisa!

Claro que ainda está tudo muito complicado! 

Mas o que eu quero dizer é que, para mim, poder sair de casa e andar pelas ruas já faz toda a diferença. 

Não poder beijocar e abraçar os meus netos é ainda o que me custa mais. 
Mas, pelo menos, já os posso ver, com máscara, claro, e sempre a uma razoável distância. 
Mas estão ao pé de mim e não cá em baixo na rua e eu na janela.

Dou umas voltas, vou ao supermercado, ao café com o meu Isidoro … Acho que voltei à vida!

Mas o engraçado é que me parece que isso aconteceu a toda a gente.

O café até tem esplanada cá fora, para poder ter mais clientes, o distanciamento é obrigatório. 

O Sr. Luís contou-me que tinha pedido autorização à Junta de Freguesia e a Presidente dissera logo que sim, nem lhe pedira papelada nem nada. E acho que autoriza todos os cafés que lhe pedem.

Grande mulher. Votei nela e hei-de votar outra vez nas próximas eleições, se ela se candidatar.

E é bom encontrar os nossos vizinhos no café. 
Gente aqui da rua, de quem nem sequer sabíamos o nome, e agora sorrimos todos uns para os outros, e dizemos “Como está?" e às vezes até conversamos. Eu, que tanto gostava que as pessoas fossem a minha casa para falarmos todos das vidas que tínhamos tido, agora faço tudo isso à vontade.

Se este mundo agora é outro, nós também temos de ser outros. E somos!

Há dias, estava eu e o meu Isidoro a tomar umas cervejas no café (é a única bebida alcoólica de que gosto) e os meus netos a comerem uma torrada na mesa ao lado quando ouço um deles:

- “Avó, na pneumónica também não foi assim?”

O Dinis, claro. O génio da família.

- “Sabes, a avó ainda não era nascida nessa altura...”

- “Ah não???”

Haviam de ver o ar de espanto dele. O Isidoro até levantou mais o jornal que estava a ler, para não se ver que tinha desatado a rir. A gente em casa conversa…

- “Não filho, isso já foi há mais de cem anos, mas acho que também morreu muita gente e que foi um bocado parecida com o Covid. Mas não sei muito mais.”

Foi então que ela se levantou lá do fundo da esplanada e veio ter connosco.

- “Queres saber mais? O meu amigo já se vai embora e eu tenho lugar na minha mesa. Se quiseres ir para lá eu conto-te tudo.”

- “Já tinhas nascido nessa altura?” - pergunta o Dinis que pode ser um génio em muitas coisas, mas a calcular a idade das pessoas, nem por isso.

Ela riu-se e o meu Isidoro aproveitou, levantou-se e disse-lhe:

- ”Se o seu amigo já lá não está, a menina Rosa pode ficar aqui no meu lugar que eu tenho de ir ao multibanco e depois vou para casa.

Claro. Os 500 euritos da praxe. E eu a fingir-me de parva.

A Rosa está uma simpatia. Nem parece a mesma. Se calhar é do tal amigo que nestes últimos tempos anda muito com ela… Se calhar é namorado… Agora ninguém se pode beijar, de maneira que não sei. Também isso não me diz respeito, a vida é dela, que já tem idade suficiente para fazer aquilo que quer.

Lá se sentou ao pé de nós e foi contando muitas coisas ao Diniz.

- “ Então, a pneumónica aconteceu há muitos, muitos anos, se calhar no tempo dos teus bisavós, em 1918. Também houve em vários países, como agora, e cá em Portugal morreu muita gente. Dizem que morreram 60 mil pessoas, mas devem ter sido muitos mais, porque nessa altura não tínhamos as informações que temos hoje. E repara que Portugal, nessa altura, tinha muito menos gente do que tem hoje… Nessa altura Portugal tinha cerca de seis milhões de habitantes e hoje tem praticamente dez milhões. É quase o dobro... “

Reparei que mais zero menos zero, não estava a fazer qualquer diferença para o Dinis e, resolvi intervir para amenizar a conversa.

- “Obrigada, menina Rosa, acho que já chega para o que ele quer saber…

Ela fez que não ouviu e continuou:

- “E sabes uma coisa engraçada? É que também naquela altura havia pessoas que diziam que aquilo não era importante, houve mesmo um presidente da República, muito antigo, chamado Sidónio Pais, que foi viajar pelo país todo, em contacto com as pessoas só para mostrar que a ele nada lhe acontecia…”

E logo a voz do Dinis:

- “Como o Bolsonaro...”

Foi a vez de a Rosa se rir.

- “Afinal também sabes muitas coisas…”

- “Foi o meu pai que me ensinou”.

Fiquei a saber que o Vasco falava de política com os meus netos. Subiu na minha consideração.

- “Ó menina Rosa…”

- “Chame-me só Rosa, D. Perpétua…”

- “Está bem, se me tirar o Dona… Não quer beber nada? Eu e o meu Isidoro bebemos sempre uma cerveja… E acho que não tomou nada na mesa em que estava com o seu namorado…

- “Namorado? Quem? O Zé Paulo? Eu não tenho namorado… Acho que já não tenho paciência… O Zé Paulo é meu colega de escola, e eu peço-lhe sempre ajuda, agora com o "tele-ensino" e as regras que é preciso ter com os miúdos… Tem sido um tormento…”

E pronto, lá ficámos a tagarelar, eu a falar-lhe da minha vida, o Sr. Luís trouxe mais uma cerveja e mais um prato de amendoins, e que bem que me senti. 

Como estas pequenas coisas a que não dávamos importância nenhuma nos podem parecer agora extraordinárias.

Mas já era tempo de voltar para casa. Estendo-lhe o prato de amendoins:

- “Acabe que são muito bons, mas acho que já comi demais…”

E foi então que a Rosa, ao olhar para os amendoins, desatou a rir, a rir, que parecia doida… Eu só lhe perguntava o que tinha acontecido e ela só abanava a cabeça, conseguia murmurar “nada, nada”, mas não parava de rir. Até que lá se conseguiu endireitar e dizer:

- “Ótimos, os amendoins estão ótimos, adoro amendoins, ninguém sabe o que os amendoins podem fazer a uma pessoa...”

Levantou-se, pegou na mala e acrescentou:

- “É uma história muito antiga. Um destes dias, quem sabe, até sou capaz de lha contar... “

E lá se afastou, a trincar uma mão cheia de amendoins, com uma força como se estivesse a trincar carne crua.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

"Os Quatro e Meia" em "A Terra gira"

 "OS QUATRO E MEIA" 
EM 
"A Terra gira"



Eu não sei
Nem como, nem quando, aqui cheguei
Sem saber
Dou por mim a viver a correr

E o mundo segue
Sem olhar para nós
Queremos tudo
Mas vivemos tudo a sós

A terra gira em contramão
Ficamos tontos sem direção
Corremos até nos faltar o ar
E a vida vai ficando para depois
E continuamos os dois a sonhar


Mal me vi
No caminho até chegar aqui
Sem contar
Corro às cegas
Sem saber onde chegar

E o mundo segue
Sem olhar para nós
Queremos tudo
Mas vivemos tudo a sós

A terra gira em contramão
Ficamos tontos sem direção
Corremos até nos faltar o ar
E a vida vai ficando para depois
E continuamos os dois a sonhar


A terra gira em contramão
Ficamos tontos sem direção
Corremos até nos faltar o ar
E a vida vai ficando para depois
E continuamos os dois a sonhar

A terra gira em contramão
Ficamos tontos sem direção
Corremos até nos faltar o ar
E a vida vai ficando para depois
E continuamos os dois a sonhar

E continuamos os dois
E continuamos os dois 
E continuamos os dois a sonhar

E mal nos encostamos aos lençóis
Com a Lua iluminando este T2
Num instante, adormecemos os dois
Mas logo chega a hora de acordar

"Os Quatro e Meia" em "Minha mãe está sempre certa"

 "Os Quatro e Meia" 
em 
"Minha mãe está sempre certa"



Ela disse-me ao jantar
Tens o prato pra acabar
A cenoura é pra comer
Dos teus olhos vai fazer
Duas estrelas a brilhar

Ela disse meu menino
Tu ainda és pequenino
Mas o tempo corre louco
E todo o empenho é pouco
Pra guiares o teu destino

Ela lê no meu olhar
Ou na minha alma aberta
Não sei bem como consegue
Mas por muito que eu o negue
Minha mãe está sempre certa


Ela disse-me atenção
Vai vestir o teu blusão
Olha que de madrugada
Já faz frio e há geada
E não estamos no Verão

Ela disse tens de ver
O que está a acontecer
Olha que essa rapariga
É muito mais que uma amiga
E não a queres perder

Ela lê no meu olhar
Ou na minha alma aberta
Não sei bem como consegue
Mas por muito que eu o negue
Minha mãe está sempre certa


Ela disse tem cuidado
Vê se abrandas um bocado
Não ponderas nem sossegas
Não pertences nem te entregas
De verdade a nenhum lado

Ela disse meu rapaz
Sabes bem do que és capaz
O mundo espera por ti
Segue em frente e sorri
Não queiras ficar para trás

Ela lê no meu olhar
Ou na minha alma aberta
Não sei bem como consegue
Mas por muito que eu o negue
Minha mãe está sempre certa


Ela lê no meu olhar
Ou na minha alma aberta
Não sei bem como consegue
Mas por muito que eu o negue
Minha mãe está sempre certa


Minha mãe está sempre certa

Minha mãe está sempre certa

"Os Quatro e Meia" em "P´ra frente é que é Lisboa

"Os Quatro e Meia" 

em 

"P´ra frente é que é Lisboa

Ergo-me da cama 
que me aquece, que me prende
Que me trama 
se me chama p'ra dormir
Saio sem demora, 
já é hora de no escuro
Lá de fora o sol resolver surgir

E acordo sonolento, rabugento
Ruminando um lamento por ter de ir trabalhar
Mas penso positivo e concluo que estar vivo
É motivo mais que bom p'ra me animar

E então saio de rompante, torno-me mais confiante
Vendo o dia amanhecer
Escolho o meu melhor sorriso, e aceito o improviso
Que o meu dia vai trazer

Aproveito ao segundo, tudo aquilo que este mundo
Faz p'ra me surpreender
Levo o dia numa boa, que p'rá frente é que é Lisboa!
Sinto-me de bem com a vida, seja o que tiver de ser!


Ergo-me da cama que me aquece, que me prende
Que me trama se me chama p'ra dormir
Saio sem demora, já é hora de no escuro
Lá de fora o sol resolver surgir

E acordo sonolento, rabugento
Ruminando um lamento por ter de ir trabalhar
Mas penso positivo e concluo que estar vivo
É motivo mais que bom p'ra me animar

E então saio de rompante, torno-me mais confiante
Vendo o dia amanhecer
Escolho o meu melhor sorriso, e aceito o improviso
Que o meu dia vai trazer

Aproveito ao segundo, tudo aquilo que este mundo
Faz p'ra me surpreender
Levo o dia numa boa, que p'rá frente é que é Lisboa!
Sinto-me de bem com a vida, seja o que tiver de ser!

Aproveito ao segundo, tudo aquilo que este mundo
Faz p'ra me surpreender
Levo o dia numa boa, que p'rá frente é que é Lisboa!
Sinto-me de bem com a vida, seja o que tiver de ser!



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

43ª Crónica: "Uma tarde dirigi-me à Alunos de Apolo”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

14-09-2020


E encontrei!

Uma tarde dirigi-me à Sociedade Recreativa Alunos de Apolo, uma das mais antigas e afamadas academias de dança do país. Daqui saíram os vários bailarinos premiados que temos.

Para além das matinés dançantes, os Alunos de Apolo tinham ainda aulas de todo o tipo de dança de salão, desde a clássica valsa até ao kuduro importado de África e que fazia as delícias da temporada.

Inscrevi-me em várias modalidades e esperei.

O programa de TV mostrara-o dançando músicas latino americanas, mas nada garantia que fosse frequentador de classes. 

A minha aposta era nas matinés dançantes. Mas depois dum mês inglório, começava a desesperar.

Há quem diga que Deus recompensa a perseverança. Pelo menos isso seria o que o Matias me diria caso soubesse da minha empreitada. 

Uma bela tarde vejo-o entrar como um dândi seboso, olhar correndo toda a sala como um predador e o meu coração saltou no peito, num misto de horror e euforia. 

O jogo começava.

Não é para me gabar, mas tenho um palminho de cara e alguns atributos físicos que me valem não poucos piropos na rua. E sim, gosto de alguns piropos, o que, para algumas franjas do momento, me torna uma traidora de género. Paciência!

Tinha, aliás, sempre um esmero especial de cada vez que aparecia nos Alunos, fazendo valer o decote e as pernas nuas, o que chamava bastante a atenção masculina.

Segundo a Vera, que conhecera nas aulas de Tango, e que tinha tanta destreza para a dança como eu para bordar arraiolos, os homens, ali, dividiam-se em dois grupos: os marialvas e os maricas.

Eu, francamente, não concordava completamente com essa distinção. Mas não podia deixar de concordar que havia, efetivamente, um grande número quer de uns quer de outros. E não, não me refiro a homossexuais, que esses são por norma perfeitamente indiferenciados. Refiro-me a homens provocatoriamente efeminados e com tiques que fariam corar qualquer mulher.

Mas voltando à história, ali estava o meu alvo, de fato completo, ostentando, como um troféu, a sua idade, tentando conferir-lhe uma dignidade que eu bem sabia não ter.

Fiz-me notada, dançando com este e com outro, em poses mais ou menos provocantes e requebros prometedores. Naturalmente, atraí a caça.

- A menina concede-me esta dança?

Como se fosse um ator dum filme dos anos vinte estendeu-me a mão. Toda eu tremia, mas apenas por dentro, na alma. Por fora estava especialmente calma.

Coloquei a minha naquela mão de sanguinário como se fosse uma princesa e dançámos. O diabo do homem dançava muito bem. Quase que nos fazia esquecer o seu passado de polícia do regime. Quase…

- Então, lá pegaste o Conde Drácula - comentou a Vera quando finalmente, ao fim de três músicas, me juntei a ela na mesa.

- Conde quê? - perguntei, pensando por segundos, que todos ali saberiam o passado da personagem.

- Drácula, pá. Tu já viste o estilo? Parece saído duma revista do tempo das nossas mães. Só que aquele traço farfalhudo na testa dá-lhe um ar arrepiante. Brrr… não deixava que me tocasse nem com uma pinça.

Eu ri aliviada.

- Mas dança bem…

- Ah, lá isso é inegável. Também não deve fazer mais nada na vida. Passa os dias por aqui.

- Engraçado, ainda não o tinha visto.

- Pelos vistos foi à “terra”, lá para cima, para o norte. Uma questão de partilhas, ao que consta. Mas olha que nunca passa mais que uma semana sem pôr aqui os pés. E mesmo assim, só se estiver doente.

Recolhi a informação, guardei-a e fui-me embora.

Conferi a veracidade do que a Vera dissera. O homem, que vim a saber chamar-se Anselmo, passava os dias na Sociedade. Ora a dançar, ora à conversa com este e aquele.

Não foi preciso grande esforço para, após mais umas danças, o levar a convidar-me para: “- Um chá, um refresco… Isto se não se incomoda de ser vista com um homem com idade para ser seu pai”, propôs.

Aceitei e consegui mesmo lançar uma gargalhada com que o tranquilizei: “- Gosto de homens mais velhos. Fazem-me sentir segura!”

Começou assim uma… relação? Não, amizade? Também não… Chamemos-lhe uma dança entre um caçador que ainda não se apercebera que não passa duma presa e uma suposta presa com um espírito de caçador de grande porte.

Uma tarde de calor infernal, em que trocáramos os salões de chá de que tanto gostava por uma esplanada no bairro, defronte de duas imperiais geladas, forneceu-me a arma do crime.

- Trazia-me um pratinho com amendoins? - pedi. Evitava sempre tomar álcool, fosse qual fosse a quantidade, sem revestir o estômago. Temia perder o sangue frio, essencial naquele jogo, que já se arrastava há demasiado tempo para o meu gosto.

Cheguei a pensar em contratar meia dúzia de tipos para fazerem o trabalho por mim. Sabia que havia inclusive quase um menu de “serviços “: uma perna partida - X; uma sova simples - Y; um traumatismo - Z…, mas o que eu queria era o prato principal - queria-o morto.

- E um de tremoços. Para mim os amendoins são mortais. Alergia em último grau. Já estive às portas da morte por causa deles. Valeu-me estar perto do "Santa Maria" e terem-me dado uma injeção. Nunca me tinha acontecido, mas parece que podemos ficar alérgicos dum momento para o outro. E se eu gosto dos malditos! - suspirou.

- Que horror! Mas se calhar já passou… - tentava saber mais e mais daquela fragilidade que parecia ter caído do céu.

- Não. Uma vez alérgico, sempre alérgico. A garganta parece que se fecha e o ar não entra. Um horror!

- Quer dizer que corres o risco de morrer asfixiado?

- Exatamente. Ainda por cima uma morte lenta e angustiante. Nem quero pensar.

A partir desse momento o trunfo estava definido. Era apenas uma questão de urdir o cenário.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

42ª Crónica: "Será que esta porcaria do vírus teve coisas boas?”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

04-09-2020


Será que esta porcaria do vírus teve coisas boas?

Cruzes, credo, claro que nem estou em mim, com certeza, para imaginar coisas destas.

Mas às vezes fico a pensar… 

Quando é que a Rosa alguma vez subia cá a casa para me fazer companhia? 

E o Sr. Doutor, que há dias ia a entrar no prédio e me viu à janela e disse:

- “Olá, D. Socorro, tudo bem com a senhora?”

Até fiquei sem fala e quando lhe respondi, já ele tinha entrado.

Isto anda por aqui qualquer coisa que eu não entendo.

Há dias, ao telefone com o meu Joãozinho, estava-lhe exatamente a falar disto.

- “Não entendo nada, meu filho. Dantes, ninguém falava com ninguém ou então eram cá umas mesuras e salamaleques…”

- “Salama… quê?”

- “…leques, filho, leques”

- “Porquê? Estava assim tanto calor para se andarem todos a abanar? Olhe, se estivessem aqui em Inglaterra é que lhes fazia bem… Aqui…”

Deixei-o a falar sozinho… 

Pode ser muito bom enfermeiro e perceber muito de televisões, mas a falar é uma desgraça. 

É tudo: “iá, OK , vamos nessa”...

Eu mal aprendi a ler e a escrever. A minha senhora é que me deu mais umas luzes… Até me ensinou uma poesia que nunca mais esqueci: 

- “Ó Maria/ diz àquela cotovia/ que cante mais devagar/ não vá o João acordar…” 

Uma vez até a disse ao meu João, mas ele não vibrou muito… 

Mas mesmo assim, sou capaz de entender o que as pessoas dizem. Mas esta gente nova… Sim, porque não é só o João… Naquele dia em que me aventurei a descer as escadas para vir à rua (e que bem me soube…), decidi ir fazer uma coisa que desde o Covid nunca mais tinha feito, fui aos Correios. São mesmo no fim da rua, só tive de esperar que saísse um rapaz para depois entrar eu, e a menina Anabela fez-me uma grande festa, vá lá, reconheceu-me mesmo com a máscara.

Antes do vírus e das máscaras, eu ia lá, às vezes, mandar umas encomendas para o meu João…Coisa pouca, claro, mas para ele não se esquecer da sua terra, uma lata de atum, um bocadito de chouriço e, se não havia muita gente, ficava sempre à conversa com a menina Anabela.

Quando la cheguei estava a rir que nem uma perdida.

- “Ó D. Socorro, viu aquele rapazito que saiu? Então não é que me entregou uma carta e me perguntou se estava tudo bem, eu disse que sim, e ele outra vez “tudo? Tem a certeza?”, e eu “sim”, e ele “é que lá no escritório mandaram-me pôr… ai o que era… era assim uma palavra muito esquisita… deixe ver… “remessa”? terá sido?”, e eu “não terá sido “remetente”? E ele “isso, era mesmo isso… As pessoas agora usam cada palavra que eu nem sei como é que vocês se entendem”…

E lá ficámos as duas a rir… Ainda pensei contar-lhe a dos salamaleques… mas não contei. Coitadinho do meu João, um dia pode haver vacina para o Covid, mas para a ignorância, nunca.

Mas voltando ao que eu estava a magicar (outra palavra que o João também não deve saber…), isto anda aqui qualquer coisa que não entendo. A Rosa, para lá de estar simpática, anda com um sorriso de orelha a orelha como nunca lhe vi…

Passarinho novo?
Quem sabe…

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

terça-feira, 1 de setembro de 2020

41ª Crónica: "O Mundo está mudado! Agora só de máscara se entra num banco!”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

27-08-2020


Dizem que o músculo do coração, como qualquer outro, tem que ser treinado para se fortalecer, com alegrias, surpresas boas, sustos e medo.

Hoje, o meu que batia tranquilamente há muito tempo, num ritmo de passarinho, como compete a qualquer músculo que se preze e que chegue à idade dos noventa, teve uma atividade que no mínimo, o rejuvenesceu para mais uma década.

Foi um dia maravilhoso, daqueles que nos fazem dar graças por estarmos vivos, por podermos desfrutar de tudo quanto esta passagem pela vida nos oferece a cada momento.

Começou logo pela manhã, com uma enorme gargalhada que me trouxe lágrimas aos olhos e me deixou sem fôlego.

Fui pôr-me à janela, à espera de ver passar a Rosa Maria e, a pensar com os meus botões, como era bom ver de novo gente na rua, para cima para baixo, mesmo com meio rosto tapado. 

Se bem que a maioria só coloca a máscara quando se cruza com alguém, que aquilo faz um calor que nem vos digo. 

E eu só a usei uma vez, quando o marçano veio entregar as compras, logo no início do desconfinamento. Foi uma vez sem exemplo. Decidi que mantínhamos o ritual antigo, de me deixar as compras cá em cima, sobre o tapete e tocar à campainha. 
Eu, entretanto, deixo-lhe num envelope o dinheiro das compras anteriores e … em paz!

Até esta coisa do bicho se ter instalado entre nós, era a menina da Segurança Social quem, todos os meses, ia ao banco levantar a minha pensão ou tratar das contas que fosse preciso.

Ora, a partir duma certa altura e com a desculpa de protegerem os velhos, acabámos por ficar para aqui abandonados e pronto.

Bem… para ser sincera, no meu caso, não foi assim. Já contei que me desentendi com ela e que a mandei passear. 

Nessa altura, a coisa estava controlada, porque o meu João ainda cá estava e passou ele a levantar o dinheiro e a pagar na maquineta o gás, a luz, a água e o que mais houvesse.

Com a ida dele lá para a terra da Rainha, fiquei sem o meu Príncipe e a coisa complicou-se.

Mas embora eu nunca tenha sido de grandes missas e terços, o certo é que devo ter um Anjo da Guarda daqueles muito bons, pois na mesma altura em que começaram a falhar as economias que sempre tenho guardadas para uma necessidade, foi quando a Rosa Maria começou a aparecer cá pela rua e, a parar por baixo da janela ou a tocar à campainha, a saber se preciso de alguma coisa.

Rapariga como aquela, há poucas! Feliz do homem que a levar…

Pois dizia eu que me pus à janela com o fito de a ver surgir na rua. Precisava que me fizesse o favor de me ir pagar as contas e de me trazer dinheiro. A minha geração confia mais no colchão onde se deita, do que nos bancos onde qualquer um pode deitar a luva ao que não lhe pertence. O pé de meia sempre à mão, é o que toda a vida ouvi dizer.

Para fazer tempo, tentava adivinhar as caras por debaixo das máscaras: “ Aquele pelo andar parece-me o genro da Aninhas. Esta é a Goreti de certeza. Aquele corte de cabelo e a forma de abanar as mãos enquanto caminha, não deixam dúvidas. Este não faço ideia nenhuma quem seja...” 

Até que a vi surgir, descendo a rua naquele passo que já reconhecia bem e que era o mesmo passo de menina. Só com pernas maiores, evidentemente.

Vinha sem máscara, porque o passeio deste lado estava vazio e assim que me viu acenou-me. Fiz-lhe sinal para que subisse e abri-lhe a porta da rua, sem esperar pelo toque.

Entrou mascarada, pois claro, mas depois defronte do chá e à distância regulamentar, pusemo-nos ambas à civil.

Não ficou muito tempo, estava apressada. Ai estes jovens, sempre a correr, sem se darem conta que correm para coisíssima nenhuma. Pouco depois, levantou-se.

– Então está combinado . Deixa-me lá pôr a máscara e ir ao banco. Aproveito e tiro dinheiro para mim também.

Olhámos uma para a outra e desatámos numa gargalhada.

O Mundo tinha de facto mudado! Agora só de máscara se entra num banco. Quem havia de dizer hein???

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

40ª Crónica: "Lá me aventurei a ir para a Ericeira"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

21-08-2020


E pronto, cheio de máscaras, de frascos de gel, casacos, camisolas e mantas, lá me aventurei a ir para a Ericeira. 
Depois do confinamento, depois de semanas e semanas à janela, a olhar para a rua deserta, nada melhor que ir ver o mar.
As pessoas, às vezes, dizem-me que não entendem por que gosto tanto da Ericeira, com um clima terrível, em vez de, por exemplo, gostar do sol e do mar quentinho das praias do Algarve.
Eu respondo-lhes sempre que, se quisesse água quentinha, não saía de casa e metia-me na banheira.
Mas a Ericeira e o meu amor por ela, não tem só a ver com a praia em si, mas com toda a história que ela tem. 
E jornalista é sempre jornalista, não é?

A primeira vez que aqui cheguei, foi em reportagem, em Maio de 1995. 
O meu jornal, como todos os outros, quis mandar alguém fazer uma reportagem sobre os 50 anos do fim da Grande Guerra. E já se sabe, para assuntos históricos, cá o Matias está sempre à mão.

Lembro-me que reuni com o chefe de redação e o diretor (um assunto destes era de responsabilidade…) para ver o que iríamos fazer, já que todos os jornais iam pegar no assunto.

Foi então que o meu chefe de redação murmurou :

- “Se calhar pegar na história dos judeus talvez não fosse má ideia…"

O diretor disse logo que não, agora os judeus:

- “Dos judeus vão todos falar, caramba...”

- “Mas se calhar, a história dos meus judeus ninguém conhece…” - atalhou logo o chefe.

Ficámos ambos a olhar para ele, até que ele disse que tinha nascido numa aldeia chamada Santo Isidoro, mesmo ao pé da Ericeira. E que na Ericeira havia histórias de judeus que a maior parte das pessoas não conhecia.

E pronto, lá fui eu para a Ericeira, sem saber absolutamente nada do que ia fazer. Apesar de não estarmos em tempo de praia, só tropeçava em turistas e esses abanavam a cabeça como eu.

Mas o primeiro jagoz que encontrei, (não, não estou a chamar nomes feios às pessoas, é assim que se chamam os nascidos na Ericeira, assim como os lisboetas são alfacinhas, por exemplo) esse, mal abriu a boca, contou-me logo tudo.

Assim.

A seguir ao fim da guerra, muitos países acolheram refugiados. Portugal também. Lembrava-me de ouvir a Patrícia dizer que tinha conhecido uma miúda refugiada, que vivia no Tortosendo, onde ela ia às vezes com os pais. E sabia que tinham ido para Cascais e para o Estoril.

Mas a pequena vila da Ericeira tinha acolhido não um, não cinco ou dez, ou cem, mas três mil.

Três mil judeus alemães que vieram e se instalaram nas casas das pessoas e conviveram com toda a gente.

E antes dessa vinda, já em 1940, o Cônsul Geral da Polónia em Lyon, tinha conseguido fugir e chegar à Ericeira e por cá ficar.

Os antigos donos de cafés onde eu vou agora, ainda se lembravam deles e contavam-me tudo. 

Claro que a PIDE (PVIDE nessa altura), estava de olho em todos, não podiam sair para mais longe de 8 km da Ericeira.

E uma dessas senhoras com quem então falei, contava-me que era ela que ia ter com a polícia e lhes pedia para levar alguns a Lisboa, ao cinema:

- “ Mas o que é que estas pobres almas podem fazer de mal ?” 

E às vezes lá iam.

Ao princípio a população estranhou, mulheres que entravam em cafés? Namorados que se beijavam em público e viviam juntos? Mulheres a fumar e sem meias?

Mas isso, contribuiu muito para abrir os olhos a esta população dos anos 40… 
E o convívio foi sempre bom. 
E segundo todos afirmaram, nunca nenhum deles ficou a dever nada, mesmo quando o Comité de Acolhimento tardava a dar-lhes as poucas moedas para a sua sobrevivência.

E quando finalmente puderam regressar ao seu país, um ou outro ficou por cá. 
E os que foram, convidavam as pessoas com quem tinham estado, para irem vê-los à Alemanha. 

Nunca se esqueceram.

Agora há poucos vestígios, claro. 
Uma casa com um nome alemão. 
Uma placa de azulejo com uma casa e uma rua alemã. 
A placa na Pensão Morais (que hoje já não é pensão, mas continua a chamar-se assim…) a lembrar a sua vinda.

Depois de tudo isto, digam-me lá se eu podia escolher outra praia?

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!