terça-feira, 30 de junho de 2020

31ª Crónica: "Homem que é homem não anda praí a coscuvilhar."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

29-06-2020


Homem que é homem não anda praí a falar da vida de cada um, nem a coscuvilhar.

Foi por isso que deixei a Perpétua falar sem lhe dar troco. Está bem de ver que resmungou logo, que eu nunca ligo a nada do que ela diz…

Mas eu sei que ela estava completamente errada, para quê dizer fosse o que fosse? Vinha entusiasmada com a possibilidade de ter descoberto que a Rosa Maria e o jornalista tinham um caso e que o homem de quem se falou em tempos, e que era bem mais velho que ela, seria o Matias, sem tirar nem pôr.

Eu limitei-me a sorrir para dentro, fazendo de conta que a coisa me interessava, pensando com os meus botões: “Mal tu sabes…”

É que, ao contrário da minha querida mulher, que se gaba de saber tudo o que se passa na rua inteira, neste caso eu sei bem mais do que ela.

Como eu digo, homem que é homem, pelo menos da minha geração, só duas coisas lhe chamam à atenção e o levam a suspirar. Bem… na realidade três…, mas a terceira, se for um cavalheiro, não a discute no café ou com os amigos. As restantes são o futebol e… os automóveis.

Quando casei nem sonhava em vir a ter um carro. Isso era um luxo, muito acima das minhas possibilidades. Aliás, só tirei a Carta de Condução já depois de ter sido pai e, carro próprio, comprei o primeiro em segunda mão, quando a minha mais velha fez o exame da quarta classe. Era, pois, um objeto de desejo e, como todos os desejos, chamava-me à atenção de cada vez que via um.

Por isso, não me passou despercebido ver estacionado ao cimo da rua um belo dum “boca de sapo” cinzento escuro, quase preto, durante noites a fio. Estávamos no princípio dos anos setenta, ainda só se sonhava com a liberdade e, mesmo assim, muito a medo, que há quem fale enquanto dorme.

Mas dizia eu que o tal boca de sapo parava ao cimo da rua e eu, que descia do elétrico, namorava-o platonicamente e suspirava. Um dia cheguei mesmo a tocá-lo e aquela macieza da tinta polida provocou-me uma tal sensação de alegria que cheguei assobiando a casa. Era como se entre o carro e eu, por aquele toque, se tivesse estabelecido um elo qualquer. E depois havia outra coisa que nos unia: as duas letras da matrícula PI, Perpétua e Isidoro. Fôramos feitos um para o outro!

Uma noite vi um homem entrar no carro. Tinha um ar sinistro que não deixava dúvidas: só podia ser um PIDE. Instintivamente encostei-me mais à parede e cumprimentei-o, com o respeito que o medo nos impõe.

– Boa noite!

Não lhe ouvi resposta, mas o rosto, esse, vi-o bem. Há quem tenha cara do ofício. Olhamos para um indivíduo e dizemos: aquele é padre (rosto escanhoado até ao limite, fala ciciada, mãos limpas e quase femininas), o outro é talhante (ar bruto, mãos enormes, pouco cuidado), enfim… hoje diriam que são estereótipos. Mas na altura, o tipo que vi só podia ser polícia e, como estava à paisana,… apostava que era PIDE!

De estatura mediana a puxar para o baixo, fininho e com a testa onde reinava uma única sobrancelha farfalhuda que ia dum sobrolho ao outro. Um rosto assim não se consegue esquecer.

Voltei a vê-lo sempre no mesmo lugar, às vezes dentro do carro, outras cá fora fumando. Lembro-me de ter pensado quem seria o pobre coitado que vigiava. Porque não havia dúvida de que vigiava alguém.

Entretanto o tempo passou, veio o 25 de Abril, acabou-se a PIDE. Nessa altura já havia algum tempo que o boca de sapo tinha desaparecido da rua. Aliás, ter conhecido o dono fora um enorme desgosto, quase uma traição que o carro me fizera, ao entregar o desejado volante a um ser tão abominável. E não apenas pelo que era, mas também por ser tão feio, que a própria presença era já de si torturante.

Foi por isso que quando o vi, passados muitos anos, com a Rosa Maria, o meu espanto foi de tal forma que quase bato contra a traseira do carro à minha frente. Iam os dois a sair de mão dada e a rir, da Versalhes.

Aquilo, confesso que mexeu comigo. Eu, que não sou de me meter na vida de ninguém, nessa noite perguntei à Perpétua se tinha sabido mais alguma coisa da gaiata que morara aqui na rua. Está bem de ver que a minha mulher, não deixando os créditos por mãos alheias, me deu de imediato a ficha completa. Não fosse ela um coração de manteiga e tivessem conhecido os seus dotes, estou em crer que teria sido chefe das secretas!

Foi-me dizendo que a Rosa Maria tinha voltado a viver cá na rua, havia um par de meses, na mesma casa onde nascera. Entre comentários e informações do mais variado, sempre me foi dizendo que toda a rua sabia que quem a mantinha era um velho com idade para ser pai dela.

Fiquei esclarecido.

Embora o assunto não fosse da minha conta, metia-me impressão que uma rapariga, cujo pai tinha sido vítima duma polícia como aquela, acabasse de cama e pucarinho com um tipo velho, feio como a noite dos trovões, com um bigode na testa e que ainda por cima fora agente da PIDE. E ela, que até era uma miúda bem gira… Coisas!!!

Tudo isto teria ficado por aqui, não fosse ter-se dado o caso duma manhã de Verão, ao sair de casa, tropeçar num corpo caído na soleira da porta do prédio!

O homem estava mais hirto que um bacalhau! A nuca pousada no degrau de pedra estava empapada do sangue que, entretanto, já tinha coagulado e, no lugar da sobrancelha que lhe corria a testa, tinha um lanho feio!

Não me restavam dúvidas de quem era o morto. Vira-o as vezes suficientes para o identificar fosse onde fosse.

Mas quando a polícia chegou, perguntando se alguém sabia de quem se tratava, já que o homem estava em mangas de camisa e não tinha identificação, eu calei-me muito caladinho. Até porque entre as pessoas que entretanto encheram a rua, estava a Rosa Maria, que, impassivelmente, olhava o cadáver sem nada dizer.

Aquilo, a mim, fez-me espécie e achei que ali havia gato. Mas a polícia acabou por dar a coisa como tendo sido um bêbado qualquer que tropeçara e tivera a má sorte de acertar no degrau.

E o corte na testa? apetecia-me perguntar, mas não tugi nem mugi. Isto são muitos anos de Agatha Christi e muitas temporadas de CSI. Em boca fechada não entra mosca. Caso encerrado!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

sexta-feira, 26 de junho de 2020

30ª Crónica: "Claro, tinha de dar para o torto..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

26-06-2020


Claro, tinha de dar para o torto…

Quando tudo parecia tão bem encaminhado, já me via a ir para a Ericeira com os amigos, a não parar em casa, a pôr até um cadeado aqui nesta janela, para não me lembrar dos meses em que vi o mundo só através dela... voltou tudo atrás.

Porque nós não somos capazes de cumprir ordens.
Porque nós pensamos sempre que as coisas más, só acontecem aos outros.
Porque quando podemos estar com 10 pessoas, estamos logo com cem ou mil.

E lá regressámos a um meio confinamento (esperemos que não volte a ser total) com medidas restritivas paras as lojas e cafés…

Pronto.
Mais uns tempos em casa. 
Mais uns livritos a ler para passar o tempo.

Mesmo assim ainda vou à janela e vejo a Rosa chegar a casa com um tipo que eu não conheço. Meu Deus, já pareço as bisbilhoteiras cá do prédio.

Que me interessa a mim quem a Rosa namora ou deixa de namorar… 
Já tem mais que idade para levar a vida que quer. 
Era o que faltava ter de me dar explicações.

Mas gostei de ver que ele cumpria as regras de distanciamento, que lhe acenou com a mão e que não entrou em casa. Pelo menos é cuidadoso em relação ao vírus.

Às vezes penso que devia dar mais atenção à Rosa. Claro que não foi por minha causa que o pai dela foi morto, e já falámos ambos sobre isso, mas essas coisas acabam sempre por nos aproximar.

Queria deixar a janela aberta por causa do calor, mas já sei que vinha para aí um enxame de melgas (será enxame que se diz? Não tenho pachorra para ir ver, se for, tudo bem, se não for, que se lixem as melgas), e eu acordava todo cheio de borbulhas.

Abro só por momentos o ar condicionado que é um perigo para a minha asma e para o meu bolso… e vou à estante buscar um livro. 
Para dizer a verdade não me apetece muito ler e pego no primeiro que me vem à mão.
Abro-o. E logo na primeira página um nº de telemóvel.

Desatei a rir que parecia maluco. 
Ao tempo que não me lembrava daquelas cenas de há tantos anos… 
E até pensei que o livro tivesse ficado em casa da Patrícia.
E, sentado no sofá, lembrei-me de cada momento desses dias.

Tenho de confessar: apesar de eu ser jornalista e de ler tudo e mais alguma coisa, apesar de a Patrícia também ler muito, nenhum dos meus filhos era dado a grandes leituras… Liam o que era obrigatório na escola... e mesmo assim…

Eu ralhava, a Patrícia ralhava, mas nada feito. 
Aquilo eram as consolas, e coisas assim... livros, “népia”.

Até que um dia eu descobri um livro em cima da mesa de cabeceira do Rafael.
“As Naus” do Lobo Antunes.

Caramba, o rapaz estava a progredir… E logo o Lobo Antunes, nada fácil de ler para um principiante nessas lides. Esfreguei as mãos de contente mas nem disse nada à Patrícia, com medo que ela lhe perguntasse alguma coisa e fosse tudo por água abaixo.

E durante dias e dias “As Naus “ lá estavam.
Um dia achei que ele já tinha tido mais que tempo de o ler, e como sou muito arrumado com os meus livros (deve ser a única coisa…), coloquei-o na estante.

– Ó pai, sabes de “As Naus” do Lobo Antunes? - uma voz meio zangada.

Fui logo buscá-lo e entreguei-lhe
Ele enfiou-se no quarto até à hora de jantar.
Eu estava mesmo contente.

E aquilo repetiu-se várias vezes: eu arrumava-o e ele pedia-mo.
Até que um dia não resisti:

“Estás mesmo a gostar das “Naus”…

“De quê, pai?”

“Das Naus”, o livro do Lobo Antunes… É muito bom, não é?…”

“Das Naus??? Ah, deste livro”...

E olhou para ele. E desatou a rir.

“Ah, se é bom não sei, nem me interessa. Mas é que foi aqui nesta página que eu tomei nota do telemóvel de uma namorada e ainda não o sei de cor…”

Acho que no próximo dia em que estiver com o Rafael lho vou entregar. 
Preciosidades destas não se podem perder.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

quarta-feira, 24 de junho de 2020

29ª Crónica: "Mas afinal as pessoas podem juntar-se ou não podem?"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-06-2020


Isto assim ninguém se entende! 
Mas afinal as pessoas podem juntar-se ou não podem? 

Não podem ir ao Santuário de Fátima mas podem ir à Festa do Avante. 
Não podem festejar os Santos Populares mas se houver uma esplanada com música e um fogareiro com “ belas sardinhas” podem dar um pezinho de dança. 
Podem ir à praia, mas têm que ser contados. 
Podem ir aos centros comerciais mas não podem ir aos funerais que são ao ar livre.

Olha, é a única coisa que me preocupa: ter o que se chamava na minha terra, uma morte vil, sem ninguém a acompanhar-me o corpo à última morada.
Não que tenha muita gente das minhas relações, mas mesmo assim, custa-me pensar que nem um cão terei como companhia no Trajeto até à cova.

Tivesse eu menos uns anos e pernas que ainda me levassem (ou um elevador), haviam de ver se saía ou não. 

Está tudo convencido que fica cá para semente!

Eu que já ando por cá há quase um século, vi epidemias, guerras e tudo e tudo. 
A humanidade não acabou! 
Morreu gente? 
Pois claro que morreu. 
Mas morreu da doença, ou da fome, ou da guerra. 
Hoje quer-me parecer que com tanto disparate e tanta conversa, morre-se mais de susto e de solidão.

Se não estivesse habituada a estar sozinha há anos, e não me valesse esta janela de onde vejo passar a vida dos outros, já estava no vale das tabuletas há muito tempo! 
Imagino aqueles que têm filhos, netos, família e que não têm um abraço, não os veem. 

Bolas, antes a morte, caramba.

Olho o dia lá fora. É já Verão e não há nada tão bonito como o Verão nesta rua.

A rapariga que se aproxima acena-me. Reconheço-a, agora já não me escapa, é a Rosa. Aceno-lhe também.

- Está boazinha? – pergunta-me lá de baixo.

- Ó filha, eu cá boazinha nunca fui e isto com a idade só piora. Mas de saúde estou fina. Não fossem estas pernas que têm mais anos que a cabeça, ainda era rapariga para saltar a fogueira.

Ela dá uma gargalhada e eu fico a pensar que a algumas pessoas o tempo faz muito bem. Não me lembro de a ver rir quando era miúda. Se calhar foi por isso que convidei:

- Queres subir e tomar um chazinho aqui com a velhota?

Estava à espera duma desculpa qualquer, mas para minha surpresa ela disse que sim. 

Abri-lhe a porta e quando fui fechar a janela, quem vejo eu entrar no prédio quase à sorrelfa? A cusca da Perpétua, pois então. Até parecia que estava a seguir a rapariga, diabo da mulher. Capacíssima disso é ela.

Abro a porta e dou de caras com a Rosa de máscara.

- Ai rapariga, tu tira-me lá essa coisa que senão até grito que me vão assaltar.

- Ó D. Socorro isto é para a proteger - justifica ela.

- Pois olha, pelos 50 anos que ainda hei de cá andar, prefiro ver a cara das pessoas ao completo. Entra.

Desde que o meu João se foi embora, nunca mais tive companhia para o chá e bolachas. Soube-me pela vida. Estivemos para ali à conversa até ser escuro.

Falou-me da vida que levara até ter voltado de novo cá para a rua. Tinha sido feliz, e tal como eu também a providência ou o destino a tinham brindado com uma pequena fortuna.

- O meu padrasto foi um verdadeiro pai. Em tudo. 

E pareceu-me ver-lhe os olhos mais brilhantes.

- Então e namorados, marido, como é?

Riu de novo. Incrível como o bichinho do mato se transformou nesta mulher de riso fácil.

- Ai D. Socorro, não tenho pachorra para homens. Não sou nenhuma freira mas… olhe vão uns, chegam outros. Mas ficarem… não. Dá muito trabalho. E também já passei da idade.

- Ora essa! Uma mulher como tu passou lá agora da idade. Que direi eu então…

- Não me diga que há mouro na costa…

- O único mouro na costa há de ser o anjo ou o mafarrico que me levar para o lado de lá. Mas tivesse eu menos dez anos e se aparecesse assim um velhote jeitoso….

Gargalhamos como duas amigas de sempre. Quando se foi embora prometeu voltar.

Nessa noite deitei-me com uma leveza que não sentia há muito. A solidão, mesmo para quem a tem como companheira há anos, é pesada, e aquela tarde assim acompanhada, falando de tudo e de nada, fez-me rejuvenescer.

Porém, a meio da noite acordei sobressaltada ensopada em suor.

De repente, pelo meio dum sonho, relembrei: eu vira-a com um homem, certo dia há muito tempo atrás. Na altura não a reconheci, mas agora não tinha dúvidas, era ela. 

E já não consegui voltar a adormecer.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

sábado, 20 de junho de 2020

28ª Crónica: "Estive à janela a apanhar este fresquinho da tarde..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

17-06-2020


Estive à janela, a apanhar este fresquinho da tarde e a ver já algum movimento na rua.

Ainda me estou a rir com a fúria da Perpétua… 
Aquilo foi de estar tanto tempo metida em casa… 
Daqui a bocado chega aí e desatamos os dois a rir da palermice. 
Porque ela não é nada assim. Por isso é que eu me meti com ela. Tem fama de saber a vida de toda a gente, mas não se mete com ninguém.

O que ela gostava — e muitas vezes já o disse — era de convidar, cá para casa, os nossos vizinhos, e cada um contar a sua vida. 
Não por bisbilhotice, mas para entendermos o que as pessoas já passaram. De bom e de mau. 

Porque ela assegura — e tem um bocado de razão — que ninguém deste prédio deve ter tido uma vida tão cheia como a dela. 
Os bailes da chita, as Noivas de Santo António, a viagem de núpcias, a viagem ao estrangeiro para ver a Luísa… Nada mau…

Aproveito ela não estar cá e vou fumar um cigarrito. Eu sei, eu sei que me faz mal — ao pé dos meus netos, nunca fumo — mas às vezes apetece-me, e meia dúzia de cigarros, também não me hão de fazer assim tanto mal.

Desde aquela história da endoscopia — ainda hoje coro de vergonha — a Perpétua insiste muito para eu ir ao médico de vez em quando, visita de rotina, mas pronto, com a minha idade é preciso ter cuidado com a saúde.

Aqui há tempos, ainda o bicho não tinha atacado e os médicos estavam livres, lá fui ao centro de saúde. O meu médico não estava e fui atendido por outro que eu nunca tinha visto. Fez-me uma data de perguntas e desculpou-se, mas o Dr. Fonseca tinha metido férias e ele é que tinha ficado com os doentes dele. Perguntas e mais perguntas, medida da tensão, um olhar para o écran do computador a ver as minhas fichas todas, e o meu processo todo, e agora suba ali para a marquesa para eu o apalpar, e por aí fora. Depois, vieram as perguntas sacramentais:

- Fuma?

- Muito pouco Sr. Dr., há dias em que fumo uns dois, três cigarritos, mas há dias em que não fumo nada… É mais por gosto do que por vício, Sr. Dr..

Resmungou qualquer coisa que não entendi e teclou lá umas coisas.

- Faz dieta?

Aí engasguei-me. Com os petiscos da Perpétua, quem é que podia fazer dieta…

- Quer dizer... Não como feijoada todos os dias, claro, mas assim uma dieta, mesmo uma dieta a sério, cozidos e grelhados, isso não faço não, Sr. Dr..

Ele olhou mais uma vez para o meu processo…

- Já calculava…

O tom não agoirava nada de bom. Pegou numa receita e começou a escrever, sempre sem dizer nada. Depois parou, afastou-se um bocadinho da secretária e lá começou a ditar a sentença.

- Então é assim… O senhor não está mal, mas vai-me prometer que não volta a pegar num cigarro, e leva aqui as indicações para uma dieta, que eu quero que cumpra a rigor.

Fez uma pausa.

- Porque é assim, hoje o senhor não está mal, mas quando chegar aos 80 é que vai ver… E depois vai-se lastimar por não ter feito dieta e essas coisas. Porque não deve pensar só nestes dias, mas no que vai ser a sua vida daqui a anos. Então não pode fazer nada…

Outra pausa.

- Estamos entendidos?

- Estamos, Sr. Dr.

Vesti o casaco e tive pena que a Perpétua não tivesse ido comigo. Para me consolar. Ouvir uma coisa destas, não é fácil.

Entrei em casa e ela estava enfiada em novelos de linha branca a fazer uma colcha para a Teresa.

- Então?

- Então, tens de passar a fazer peixe grelhado e cozido, para mim, todos os dias

- Porquê?

- Porque o Sr. Dr. disse que se eu quero chegar aos 80, tenho de ter muito cuidado.

- Chegar aos 80? Mas tu já tens 85…

- Ele não me perguntou…

Desatámos a rir, e pelo menos com a certeza que ainda posso comer cozido e arroz de pato, por mais alguns anos…

E neste momento ouço a chave na porta. A Perpétua entra, com um sorriso de orelha a orelha.

- Desculpa lá, não sei o que me deu há bocado. Foi de estar aqui metida tanto tempo… E sabes o que me aconteceu? Eu ia pelos passeios e só dizia para mim “quero ir para casa, eu quero ir para casa”… Já não estou habituada a sair, como dantes. Isto é que é uma vida… Bom, mas vamos lá ao trabalho. Deixei bacalhau de molho, vamos lá fazer um bacalhau à Zé do Pipo…

Vou até à janela. De vez em quando, a Perpétua tem ideias de génio!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

27ª Crónica: "Saí de casa pior que uma barata!"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

15-06-2020


Saí de casa pior que uma barata! 
Quarenta anos juntos, quarenta!!! 
E diz-me uma coisa destas!!!
Francamente que estou que nem posso. 

Sei muito bem o que dizem de mim aqui na rua.
Que sou uma coscuvilheira, que sei de tudo, que nada da vida dos outros me passa despercebido… 

Sei até que me chamam a Menina da Rádio. Lá chamarem-me menina até gosto, embora saiba bem que esses tempos vão longe. Mas não é elogio o que me fazem. Querem com isto dizer que sou linguaruda. Que injustiça!

Mas que os outros o pensem e digam (pelas costas, que na minha cara quero ver quem tinha coragem!). Agora o meu Isidoro?! Nunca pensei…

Está uma pessoa há meses trancada entre quatro paredes e, quando finalmente pode sair e diz: “Vou dar uma voltinha, não me demoro nada!”

Sai-se com esta: “Pois, faz-te falta dar à língua, é natural. Vá vai lá fazer a reportagem que deves ter muito com que te entreteres”. 

E ainda por cima riu. Riu!!!!

Eu saí de casa imediatamente, quando não, dava-me uma fúria e não respondia por mim. Nem passei um pozinho na cara nem nada. Abri a porta e bati-a com tal força que até o prédio abanou. Para o que uma pessoa está destinada. Virgem Mãe!

É verdade que gosto de me dar com toda a gente e também não nego que sou observadora. Foi para isso que nos deu Deus os olhinhos, ou não? 

Agora, que culpa tenho que me venham contar as coisas, não me dirão?

Subi a rua sem rumo, ainda a remoer a desfeita do meu homem. Não me lembro duma coisa assim. Isto é do bicharoco que para aí anda, de certeza!

Embora já se veja gente, o bairro está ainda muito deserto, com a maior parte das lojas fechadas e outras assim a modos de “meio pau”, com uma mesa cá fora onde atendem os clientes um a um. Olhem que dá que pensar. Como é que uma coisa que só se vê ao microscópio virou o Mundo de pernas pro ar.

Ia eu a magicar nisto tudo e a pensar que logo à noite me havia de vingar com um jantar de pescada cozida com batatas e sem ovo, que é a coisa pior que posso dar ao Isidoro, quando vejo sentados na esplanada da Virtudes, o Matias e a Rosa Maria em grande conversa.

Aquilo a mim pôs-me a pulga atrás da orelha. Que diabo tinham aqueles dois para conversar? Está bem, está bem, o pai dela e o Matias tinham sido colegas no mesmo jornal, pronto. Mas onde isso já ia! Além disso, nunca me constou que fossem grandes amigos, até porque um era jornalista e outro trabalhava nas máquinas.

Sem querer entrei na farmácia que tem uma montra que dá direitinha para a esplanada da Virtudes.

- “Ó D. Perpétua, não pode entrar sem máscara”. – disse-me a rapariga que me conhece há anos.

Com a fúria com que saí de casa lembrei-me lá eu da máscara…

- “Pois filha, por isso é que aqui estou. Para comprar uma."

Ela veio até cá fora e ajudou-me a pôr aquela coisa que nos faz parecer a todos, os irmãos Metralha, dos livros que as minhas filhas liam.

Mas o que eu queria mesmo, era entrar e sentar-me na cadeira do Dr. Bentinho, que tem uma vista formidável para a esplanada em frente. Não é para me gabar, mas sempre fui muito boa a fazer de conta. Até me diziam em tempos, que devia ter sido atriz. Olha, se calhar mais me valera, escusava de aturar desaforos. Passei a mão pela cabeça e fiz de conta que me ia abaixo das canetas.

- “Está a sentir-se bem”? - perguntou a rapariga

- “Não é nada, uma vertigem. Isto já passa." – Mas pelo sim pelo não apoiei-me no braço dela e fiz força, como quem se tem para não cair.

- “Vá, venha cá para dentro e sente-se aqui um bocadinho. Está pálida. Eu já lhe meço a tenção”.

- “Não é preciso filha, não se incomode. Isto é da idade. E depois de estar tanto tempo sem sair… "

- “Então sente-se aí quietinha que eu já lhe trago um copinho de água com açúcar. Quer que lhe ponha a cadeira mais para dentro”?

- “Não, não, está muito bem aqui. Isto passa!"

A cadeira do Dr. Bentinho, é daquelas histórias que toda a rua conhece. Toda a vida me lembro do velho senhor, dono da farmácia, passar a tarde inteira ali sentado, por vezes com um copinho de “tónico”, a ver quem entrava e quem saía. Olha a esse é que não lhe escapava nada. Mas, está claro, como era homem e doutor, ninguém se lembrou nunca de dizer que era a rádio farmácia cá da rua. 

Sabia tudo: quem estava com uma doença feia, quem tinha dormido com quem, quem estava de esperanças, quem nascia, quem batias as botas… tudo! 

Ao lado do cadeirão havia um banquinho, onde muitos se sentavam como se estivessem num confessionário, e ele depois de os ouvir, gritava lá para dentro a prescrição para a maleita sussurrada, o que não poucas vezes, criara situações embaraçosas.

Enfim, vamos lá ao que interessa. Bem… a mim tanto me faz como me fez, que entre o Matias e a Rosa Maria haja alguma coisa. Isto é modo de falar. Uma pessoa sente curiosidade, não é por mal. Além disso, falou-se aqui há anos – olha, na altura em que ela para aqui veio viver outra vez – que tinha um namorado mais velho que podia ser pai dela. Mas por esse tempo, se a memória me não falha, estou em crer que o Matias ainda estava com a mulher. O que também não quer dizer nada, verdade seja dita. 

A Sr.ª D. Idalina, uma Santa duma Senhora, a quem todos quase beijavam a mão, como se fosse a Virgem do Rosário, um belo dia também fugiu com o primo do cunhado que tinha voltado da França. Depois de ter fugido ao serviço militar, e de ter deixado na aldeia, a mulher e uma filhinha de colo. Isto quem me contou foi a Virgínia, que ia passar a ferro a casa da D. Georgete, que por sua vez, era unha com carne com a Ermelinda, a quem a D. Idalina mandava apanhar as malhas nas meias de vidro. É o que eu digo: Quem vê caras não vê corações.

Por falar em corações, aqueles dois estão para ali tão entretidos na conversa como dois namorados. Eu não me chame Perpétua ou ali há gato.

Olha, olha, vão-se embora.

- “Aqui está D. Perpétua, um copinho com água e açúcar. Desculpe lá, mas estou sozinha e o telefone não parava de tocar”.

- “Não é preciso, estou muito melhor. Adeusinho e obrigada”.

Se não me apresso, ainda os perco de vista, que as pernas já não acompanham o olhar.

Água com açúcar, que mania!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Festas Populares 2020, em plena pandemia mundial da Covid-19

Numa altura em que Lisboa, trava uma luta intensa, com a covid-19, impõem-se várias restrições à celebração das festas populares, pelo Santo António, em Lisboa.
Por conseguinte, a proibição de atividades que originem a aglomeração de pessoas, nomeadamente festas, jantares-convívio e celebrações, à semelhança dos arraiais anteriores, estão proibidos.
Deste modo, não haverá as tradicionais marchas, nem noivas de Santo António, nem arraiais ou bailaricos.
Assim, esta semana com os feriados: Dia de Portugal, ontem, Corpo de Deus, hoje e Santo António no Sábado, há muitas regras a cumprir.

# Proibição da venda de bebidas alcoólicas, nas lojas das estações de serviço, entre as 16:00 e as 10:00 do dia seguinte. 
# Cafés e Pastelarias, vão ter uma “restrição do horário” a partir das “19:00 e até às 08:00 do dia seguinte”.
# Restaurantes, Tabernas e Casas de Fado, vão ter restrições “a partir das 23:00 e até às 08:00 do dia seguinte.
# Cadeiras, mesas, grelhadores, assadores e fogareiros, estão proibidos, durante o resto desta semana, assim como a expansão da área da esplanada.

Caso não sejam cumpridas estas regras, a autarquia prevê “o encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades”.

Para animar, aqui fica o FADO DO ESTUDANTE do saudoso Vasco Santana

Que negra sina ver-me assim
Que sorte e vil degradante
Ai que saudades eu sinto em mim
Do meu viver de estudante

Nesse fugaz tempo de Amor
Que de um rapaz é o melhor
Era um audaz conquistador das raparigas
De capa ao ar cabeça ao léu
Sem me ralar vivia eu
A vadiar e tudo mais eram cantigas

Nenhuma delas me prendeu
Deixa-las eu era canja
Até ao dia em que apareceu
Essa traidora de franja

Sempre a tinir sem um tostão
Batina a abrir por um rasgão
Botas a rir num bengalão e ar descarado
A malandrar com outros tais
E a dançar para os arraiais
Para namorar, beber, folgar, cantar o fado

Recordo agora com saudade
Os calhamaços que eu lia
Os professores da faculdade
E a mesa da anatomia

Invoco em mim recordações
Que não têm fim dessas lições
Frente ao jardim do velho campo de Santana
Aulas que eu dava, se eu estudasse
Onde ainda estava nessa classe
A que eu faltava, sete dias por semana

O Fado é toda a minha fé
Embala, encanta e inebria
Dá gosto à gente ouvi-lo até
Na radio telefonia

Quando é cantado e a rigor
Bem afinado e com fulgor
É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista
É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar
Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista



26ª Crónica: "Ó Rosa, sardinhas é em Alfama, nos arraiais..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

11-06-2020


Ouço a voz da Rosa a chamar-me da rua:


- No restaurante da esquina têm sardinhas. Eu hoje não tenho aulas, queres ir?

- Sardinhas? Aqui? Ó Rosa, sardinhas é em Alfama, nos arraiais…Com manjericos…Cravos de papel…

- Melhor que nada…

- E sabes se há lugares? Agora só entra meia dúzia de pessoas…

- Já liguei. E por acaso até já marquei… Mas se não quiseres...

- Pronto, já desço.

Ponho a máscara, olho para o espelho, até parece que vou assaltar um banco, e enfio o telemóvel no bolso.

Não me posso esquecer de telefonar ao Jaime. É verdade que eles não me ligam nenhuma, mas pronto, pai é pai, e dia de anos é dia de anos.

Lá entrámos no restaurante, mais empregados que clientes, que horror, como é que esta gente se vai safar… E mesmo assim, para porem estas pessoas, têm de colocar acrílico à nossa volta, parece que estamos presos… Meu Deus, como é que de repente aconteceu isto no mundo inteiro?

A Rosa lá pediu as sardinhas enquanto eu ligava para o Jaime.

- Parabéns, filho!

- Lembrou-se, pai? Que bom!

- Então não me havia de lembrar...

Já ia começar a disparatar mas contive-me, calma Matias, calma.

- Se há coisa de que nunca me esqueço, é do dia do teu nascimento… A tua mãe nunca te contou? Foi cá uma aventura…

Entretanto as sardinhas já estavam na mesa. Pode não haver arraial, mas pelo menos gosto de as comer bem quentes.

- Olha, a tua mãe que te conte… Beijinhos a todos.

Desliguei ainda a rir. A Rosa também olhava para mim, espantada.

E de repente vi-me, há 35 anos, a tentar convencer a Patrícia a ir comigo a Alfama. Eu tinha a reportagem a fazer para o jornal, tinha de dar voltas e voltas à cabeça para não escrever todos os anos a mesma coisa, ela sempre podia dar uma ajudinha. 
Mas a Patrícia, não era muito de santos populares, e então grávida, era melhor ficar em casa. É claro que se não fosse a reportagem eu também tinha ficado, mas assim, tinha mesmo de ir.

- Não demoro muito, prometo.

- Traz-me um manjerico - pediu ela.

Lá fui, entrevistei meia dúzia de pessoas, comprei um manjerico e vim para casa. Um papel na mesa da entrada dizia: “vou à urgência, não demoro”. Corri escada abaixo, de manjerico na mão, que teria ela ido fazer à urgência?, parecia que voava, e em minutos entrava no hospital, sem fôlego.

- A minha mulher chama-se Patrícia, veio para as urgências, podem dar-me notícias?

A empregada consultou fichas e mais fichas.

- Ah, já encontrei. A sua mulher está na sala de partos

- Na sala de partos??? A fazer o quê?

- Se calhar a saltar à fogueira…

- Ó senhora, não brinque comigo que isto não tem graça nenhuma...

- Então, o que quer o senhor que ela esteja a fazer na sala de partos? A ter a criança…

- Qual criança?

- Espero que seja a sua…

- Não me enerve… A criança não era para nascer agora, ainda faltava muito tempo…

- Adiantou-se, que quer que lhe faça...

Fumei cigarros atrás de cigarros, as horas passavam e ninguém me dizia nada. Fui de novo ao guichet, a empregada já era outra.

- Já há notícias da minha mulher?

- A que horas entrou ela?

Aí engasguei-me, sabia lá a que horas ela tinha chegado...

- Não sei, só quando cheguei a casa, é que tinha lá um recado dela, a dizer que tinha vindo para as urgências…

- Estou a ver… - resmungou a empregada - foi para a farra e a mulher que ficasse em casa. Os homens não prestam mesmo… É por essas e por outras que nunca me hei-de casar…

Estava exausto, já não sabia o que fazer, eram cigarros atrás de cigarros.

Por aquela porta já tinham entrado cinco cabeças partidas, um pescoço com uma naifada, três costelas deslocadas, duas cólicas de rins, e uma voz que berrava: “agarrem-me, agarrem-me senão eu mato-a”.

Transpirava, a minha cabeça andava à roda. Deixei-me cair no sofá. Depois só sei o que me contaram. O médico chegou ao pé de mim e disse:

- Parabéns, tem ali um rapaz e peras… Pesa…

E acho que não disse mais nada... descalço, de colarinho desapertado, de manjerico caído aos meus pés, eu dormia o sono dos justos.

Enquanto no guichet a empregada repetia:

- É por estas e por outras que nunca me hei-de casar.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

25ª Crónica: "Isto das memórias são como as cerejas..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

05-06-2020

Isto das memórias são como as cerejas: umas arrastam as outras, a maior parte das vezes ao molho e sem qualquer seguimento. 
As memórias, bem entendido, que cereja é cereja e o único que se quer é que seja carnuda e docinha. 

Pronto cá está. Comecei numa ponta e já estou a perder-me. E não digam que é coisa da idade! Isto acontece a qualquer um. Que mania de pensarem que os velhos são seres inferiores. 

Olha, como aquela ideia de nos fecharem mais uns tempos em casa enquanto o resto do Mundo, larai, larai, tudo já a poder passear. Era só o que faltava! Eu quando ouvi isso deu-me uma fúria e disse para comigo: “Maria do Socorro, nem que seja a última vez que desces aquelas benditas escadas, tu vais prá rua, que a rua é de todos e para te prenderem têm que te acusar. E ser velho não é crime. É questão de tempo.” 

Para meu alívio, que já me estava a ver a esbardalhar-me escadas a baixo, lá arrepiaram caminho. Mas vinha isto a propósito de… - Ah já sei.

Hoje é um consolo estar à janela. Voltou a haver movimento na rua e embora com poucas pessoas e todas elas mascaradas (eheheh, e falávamos nós contra as mulheres árabes de lenço. É bem verdade que pela boca morre o peixe), é como se a vida tivesse voltado. 

Até o vizinho Isidoro saiu. Digo-lhe adeus mas não me vê. A máscara deve fazer diferença também à visão, e tal como todos, já não vai para novo. Ao vê-lo, lembrei-me dum episódio que ainda hoje me faz rir. Mas, para o contar, vou pegar num outro (eu não digo que isto das lembranças são como as cerejas?).

Como disse a minha senhora, antes do 25 de Abril, era um bocadinho do reviralho para grande preocupação do Sr. Engenheiro que, embora também não fosse à bola com o “botas”, era mais discreto. 

Outro dia, ao folhear os álbuns (lá vem outra vez a cara do mafarrico. Xô, xô!) encontrei várias fotos onde estava ela acompanhada da Natália Correia. Essa mesma, a grande poetisa! Era uma mulher em todos os sentidos. Linda, linda de fazer os homens virarem a cabeça e as mulheres roerem-se de inveja. E a beleza não era apenas de fora. Era assim como uma luz, uma coisa que não se explica, uma presença que quando entrava numa sala tudo o resto parecia ficar pequenino e na sombra. 

Ela e a minha senhora eram muito, mesmo muito, amigas. 
Foi sempre uma coisa engraçada: os senhores davam-se com gente do regime, talvez por necessidade, e com gente do contra. Se bem que em ambos os lados havia gente boa e má, como em tudo na vida. Adiante…

Pois elas eram muito amigas. Antes do regime cair, muitas vezes a minha senhora foi a um bar ou uma casa de chá não sei bem, que a D. Natália tinha, e ficava lá até altas horas da noite. O Senhor Engenheiro acompanhava-a quase sempre, porque “não fica bem a uma senhora apanhar um táxi para casa a desoras!” Mas de vez enquando, aí ia ela “beber um bocadinho de cultura e de liberdade” como dizia, e antes que o marido pudesse pousar o jornal e pegar no casaco, já ela estava a caminho. 

Mas a senhora D. Natália era visita também cá de casa. Tinham ambas espíritos e opiniões muito fortes, e por vezes, as discussões ouviam-se no patamar da escada. 
A senhora D. Natália falava sempre alto, quando queria fazer passar a sua, como se estivesse constantemente a falar para o público.

- A Natália devia ir para a Assembleia Nacional. Aí sim podia discursar à vontade.

A outra pegava na malinha de mão e batia a porta atrás de si com fúria.

- Nem o meu cadáver , nem o meu fantasma, transporia as portas desses antro de fascistas.

Durante dias não se falavam. Mas depois, tudo retomava o mesmo ritmo, como se nada tivesse acontecido.

Não sei se por profecia, o certo é que depois do 25 de Abril, a Srª. D. Natália acabou como deputada. 
Nessa altura, já se podiam discutir as ideias que se tinham calado durante o tempo da ditadura, e mesmo aqui em casa, muita coisa ouvi e muito aprendi sobre direitos, liberdade, sexualidade (benza-me Deus) e outras coisas. Não que escutasse às portas, que nunca fui dessas. Mas como digo, falavam alto e surda nunca fui.

Havia no entanto, um assunto que quando vinha à baila dava discussão acesa. Aliás, era de tal forma, que eu estava sempre à espera de ver qual das duas dava com a carteira (naquela altura uma senhora mesmo em sua casa tinha sempre ao seu lado a carteira de mão), na cabeça da outra.

O tema era o aborto. A minha senhora católica de missa dominical e talvez, por nunca ter sido abençoada com um filho, não podia ouvir falar de tal.
A Srª. D. Natália, essa, defendia que o corpo da mulher era o seu templo, e nele, a única autoridade era a sua consciência e a sua vontade. 

- Mas, e o anjinho? Não tem vontade?

- Qual anjinho? O feto no inicio, é igual seja de homem ou de animal! Achas que uma mulher violada tem a obrigação de manter uma gravidez até ao fim? Ser duplamente castigada e humilhada sem culpa?

- Para isso, dá-o para adoção..

- Para a criança ficar anos a fio num orfanato, sem amor sem condições… para ir parar às mãos sabe-se lá de quem. Condenas a mãe e condenas o filho. Isso é pensamento moldado na Santa Madre Igreja, que matou e continua a matar em nome de Deus, mais que muitas guerras.

E os ânimos azedavam-se forte e feio. 

Um dia, o Sr. Engenheiro ao voltar a casa, encontrou esta cena e prudente refugiou-se no escritório, sempre pronto para intervir caso fosse preciso separá-las. Até que ouviu o estrondo da porta que anunciava o fim da discussão.

Foi encontrar a senhora na sala muito abatida e nervosa. Ouviu-a durante muito tempo, comentar as ideias da poetisa, a sua falta de humanidade, o seu coração duro… Com a calma que sempre tinha disse-lhe:

- Ouve cá, Maria Emília, tu já reparaste que quem faz abortos são sobretudo mulheres comunistas ?

Eu ouvi aquilo e disse de mim para comigo que não era verdade. Pelo menos, a meia dúzia das mulheres que conhecia não eram, mas enfim se o Senhor Engenheiro dizia…

- Tens razão. Nenhuma mulher temente a Deus, comete semelhante pecado.

- Pois, então deixa fazer. São menos uns comunistas que nascem.

Foi remédio santo. Na vez seguinte em que o tema veio à baila, a minha senhora limitou-se a sorrir e a acenar com a cabeça, como se guardasse um segredo precioso. 
À srª D. Natália aquilo deve ter parecido estranho: ou conseguira convencer a amiga ou a vencera pelo cansaço. Desistiu do assunto.

Mas que tem isto a ver com o Isidoro? Essa é outra história e conta-se rápido.

A poetisa tinha uma cadela, a Paloma, e por vezes quando a levava ao veterinário que era aqui no bairro, trazia-a para o chá. A bichinha era tranquila e amorosa. Porém, numa dessas vezes, talvez por vir mais excitada do médico, viu o vizinho Isidoro na rua e, sem se saber porquê nem porque não, atirou-se-lhe às pernas, rasgou-lhe as calças e feriu-o ligeiramente.

Por azar da dona, ia a passar um polícia que interveio de imediato e queria à força toda levar a cadela para a colocar em quarentena, contra a vontade do homem que dizia que a bicha lhe tinha apenas esfrangalhado as calças e com umas novas o caso ficava resolvido.

Mas, com a Srª. D. Natália, as coisas tomavam sempre grandes proporções. Gritou ao polícia e toda a rua veio à janela:

- Na minha Paloma ninguém toca. Este ser já me inspirou um poema. Esse homem não me inspira nada. Além disso, não é culpa dela. Se não se chamasse Isidoro, provavelmente não lhe tinha cheirado a salsicha.


Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza.

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

24ª Crónica: "Nunca fui mulher de andar agarrada ao telemóvel."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

03-06-2020


Nunca fui mulher de andar agarrada ao telemóvel.

De resto, quando a Teresa se põe a dizer que o telemóvel faz tudo, tira fotografias, mostra o boletim meteorológico, as horas em todos os países, pode ser a nossa agenda, faz vídeo chamadas, grava vídeos, sei lá que mais, eu corto-lhe logo o discurso:

- “Minha querida, o telemóvel, para mim, é para fazer chamadas, receber chamadas, mandar mensagens e receber mensagens. E já é muito.

Mesmo quando ainda nem se sonhava com telemóveis, evitava o telefone sempre que podia.

Nunca namorei ao telefone, nunca perdi horas à conversa com as amigas. De resto, na Arruda toda a gente morava ao pé de toda a gente, era só ir à janela ou ao quintal e chamá-las.

Mas concordo que o telemóvel foi uma grande invenção. Como viveríamos hoje sem ele?

Ainda me lembro de ver uma telenovela há muitos anos, tinham aparecido os primeiros telemóveis (uns “tijolos” que enchiam as nossas carteiras…), em que um miúdo estava a falar pelo telemóvel com um amigo, quando chega o pai e lhe dá uma valente descompostura. Pedagogicamente, lá ensinava a criança de que um telemóvel era uma coisa muito cara, para ser usado só mesmo como uma emergência, e nunca para conversas de chacha.

Rio-me tanto quando penso nisso.

Mas estava eu a dizer, que nunca fui muito de andar sempre a correr para o telefone. Mas desde que o confinamento entrou na nossa vida (ou melhor, que a nossa vida entrou para dentro do confinamento…) toda a gente começou a ligar-me. Gente que eu já não ouvia há meses. Gente que, para falar verdade, já tinha sumido da minha cabeça há que anos.

Quando há bocado ouvi aquela musiquinha irritante (a Teresa diz que posso mudá-la, mas nem sei como isso se faz) estive mesmo para não atender, eram horas de jantar, tinha de pôr a mesa, o Isidoro gosta sempre de comer à hora certa, e o arroz de pato estava no forno. Mas acabei por atender.

- “Ó minha querida, há quanto tempo a gente não se falava… Mas olha, para a semana eu falo-te com mais tempo, porque agora, desculpa, estou cheia de pressa, e olha, até é para te dar uma notícia triste, morreu o Estêvão, imagina…

Queria interrompê-la, mas não conseguia.

- “… a Palmira está de rastos, como deves calcular, e a Nandita também, coitada, perder o pai é sempre uma coisa terrível, ainda por cima agora só podem ir 10 pessoas ao enterro, de resto ela pediu ao nosso grupo que não fosse, mas, claro, não queria deixar de nos dar a notícia. Para a semana a gente fala com mais calma, beijinhos.”

Desliguei e fui ter com o Isidoro, que se despedia do Doutor.

- “Tenho uma notícia triste para te dar…”

- “Mau… se é má notícia, diz lá depressa, que eu…"

Nem o deixei acabar:

- “Morreu o Estêvão.”

- “Quem?”

- “O Estêvão… Coitado… O marido da Palmira…”

- “O marido de quem?”

- “Ó homem, da Palmira… Pai da Nandita…”

- “Eu devo estar maluco, mas não faço a mínima ideia de quem é essa gente…”

- “Nem eu. Mas a senhora falava tão depressa que nem me deu tempo para lhe dizer que era engano.”

Olhámos um para o outro e desatámos a rir.

- “Coitado, logo rezamos uma ave-maria pela sua alma, mas agora vamos jantar.”

Se o Estêvão tivesse comido um arroz de pato como o meu, ao menos teria morrido regalado.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!