terça-feira, 30 de junho de 2020

31ª Crónica: "Homem que é homem não anda praí a coscuvilhar."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

29-06-2020


Homem que é homem não anda praí a falar da vida de cada um, nem a coscuvilhar.

Foi por isso que deixei a Perpétua falar sem lhe dar troco. Está bem de ver que resmungou logo, que eu nunca ligo a nada do que ela diz…

Mas eu sei que ela estava completamente errada, para quê dizer fosse o que fosse? Vinha entusiasmada com a possibilidade de ter descoberto que a Rosa Maria e o jornalista tinham um caso e que o homem de quem se falou em tempos, e que era bem mais velho que ela, seria o Matias, sem tirar nem pôr.

Eu limitei-me a sorrir para dentro, fazendo de conta que a coisa me interessava, pensando com os meus botões: “Mal tu sabes…”

É que, ao contrário da minha querida mulher, que se gaba de saber tudo o que se passa na rua inteira, neste caso eu sei bem mais do que ela.

Como eu digo, homem que é homem, pelo menos da minha geração, só duas coisas lhe chamam à atenção e o levam a suspirar. Bem… na realidade três…, mas a terceira, se for um cavalheiro, não a discute no café ou com os amigos. As restantes são o futebol e… os automóveis.

Quando casei nem sonhava em vir a ter um carro. Isso era um luxo, muito acima das minhas possibilidades. Aliás, só tirei a Carta de Condução já depois de ter sido pai e, carro próprio, comprei o primeiro em segunda mão, quando a minha mais velha fez o exame da quarta classe. Era, pois, um objeto de desejo e, como todos os desejos, chamava-me à atenção de cada vez que via um.

Por isso, não me passou despercebido ver estacionado ao cimo da rua um belo dum “boca de sapo” cinzento escuro, quase preto, durante noites a fio. Estávamos no princípio dos anos setenta, ainda só se sonhava com a liberdade e, mesmo assim, muito a medo, que há quem fale enquanto dorme.

Mas dizia eu que o tal boca de sapo parava ao cimo da rua e eu, que descia do elétrico, namorava-o platonicamente e suspirava. Um dia cheguei mesmo a tocá-lo e aquela macieza da tinta polida provocou-me uma tal sensação de alegria que cheguei assobiando a casa. Era como se entre o carro e eu, por aquele toque, se tivesse estabelecido um elo qualquer. E depois havia outra coisa que nos unia: as duas letras da matrícula PI, Perpétua e Isidoro. Fôramos feitos um para o outro!

Uma noite vi um homem entrar no carro. Tinha um ar sinistro que não deixava dúvidas: só podia ser um PIDE. Instintivamente encostei-me mais à parede e cumprimentei-o, com o respeito que o medo nos impõe.

– Boa noite!

Não lhe ouvi resposta, mas o rosto, esse, vi-o bem. Há quem tenha cara do ofício. Olhamos para um indivíduo e dizemos: aquele é padre (rosto escanhoado até ao limite, fala ciciada, mãos limpas e quase femininas), o outro é talhante (ar bruto, mãos enormes, pouco cuidado), enfim… hoje diriam que são estereótipos. Mas na altura, o tipo que vi só podia ser polícia e, como estava à paisana,… apostava que era PIDE!

De estatura mediana a puxar para o baixo, fininho e com a testa onde reinava uma única sobrancelha farfalhuda que ia dum sobrolho ao outro. Um rosto assim não se consegue esquecer.

Voltei a vê-lo sempre no mesmo lugar, às vezes dentro do carro, outras cá fora fumando. Lembro-me de ter pensado quem seria o pobre coitado que vigiava. Porque não havia dúvida de que vigiava alguém.

Entretanto o tempo passou, veio o 25 de Abril, acabou-se a PIDE. Nessa altura já havia algum tempo que o boca de sapo tinha desaparecido da rua. Aliás, ter conhecido o dono fora um enorme desgosto, quase uma traição que o carro me fizera, ao entregar o desejado volante a um ser tão abominável. E não apenas pelo que era, mas também por ser tão feio, que a própria presença era já de si torturante.

Foi por isso que quando o vi, passados muitos anos, com a Rosa Maria, o meu espanto foi de tal forma que quase bato contra a traseira do carro à minha frente. Iam os dois a sair de mão dada e a rir, da Versalhes.

Aquilo, confesso que mexeu comigo. Eu, que não sou de me meter na vida de ninguém, nessa noite perguntei à Perpétua se tinha sabido mais alguma coisa da gaiata que morara aqui na rua. Está bem de ver que a minha mulher, não deixando os créditos por mãos alheias, me deu de imediato a ficha completa. Não fosse ela um coração de manteiga e tivessem conhecido os seus dotes, estou em crer que teria sido chefe das secretas!

Foi-me dizendo que a Rosa Maria tinha voltado a viver cá na rua, havia um par de meses, na mesma casa onde nascera. Entre comentários e informações do mais variado, sempre me foi dizendo que toda a rua sabia que quem a mantinha era um velho com idade para ser pai dela.

Fiquei esclarecido.

Embora o assunto não fosse da minha conta, metia-me impressão que uma rapariga, cujo pai tinha sido vítima duma polícia como aquela, acabasse de cama e pucarinho com um tipo velho, feio como a noite dos trovões, com um bigode na testa e que ainda por cima fora agente da PIDE. E ela, que até era uma miúda bem gira… Coisas!!!

Tudo isto teria ficado por aqui, não fosse ter-se dado o caso duma manhã de Verão, ao sair de casa, tropeçar num corpo caído na soleira da porta do prédio!

O homem estava mais hirto que um bacalhau! A nuca pousada no degrau de pedra estava empapada do sangue que, entretanto, já tinha coagulado e, no lugar da sobrancelha que lhe corria a testa, tinha um lanho feio!

Não me restavam dúvidas de quem era o morto. Vira-o as vezes suficientes para o identificar fosse onde fosse.

Mas quando a polícia chegou, perguntando se alguém sabia de quem se tratava, já que o homem estava em mangas de camisa e não tinha identificação, eu calei-me muito caladinho. Até porque entre as pessoas que entretanto encheram a rua, estava a Rosa Maria, que, impassivelmente, olhava o cadáver sem nada dizer.

Aquilo, a mim, fez-me espécie e achei que ali havia gato. Mas a polícia acabou por dar a coisa como tendo sido um bêbado qualquer que tropeçara e tivera a má sorte de acertar no degrau.

E o corte na testa? apetecia-me perguntar, mas não tugi nem mugi. Isto são muitos anos de Agatha Christi e muitas temporadas de CSI. Em boca fechada não entra mosca. Caso encerrado!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

2 comentários:

  1. PI, Perpétua e Isidoro! ah ah ah
    muito engraçado, uma crónica que nos remete para uma época de medo
    mas com a ternura de quem não julga as memórias, mas que as coloca
    no livro da vida!
    beijinhos, boa semana
    Angela

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    1. Olá Ângela,
      Contrariando os dias de hoje que parece que todo o Mundo pretende apagar as más memórias do passado, como se o Mundo apenas começasse agora, sem a idade da pedra, do ferro, do fogo, das conquistas, da escravatura, do fascismo, da guerra fria, do nazismo... enfim, apenas com centros comerciais, internet, reality shows... que tempos estes... sem passado não se constrói um futuro melhor...
      Abraço e que continuemos sem Covid
      MTP

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