quarta-feira, 24 de junho de 2020

29ª Crónica: "Mas afinal as pessoas podem juntar-se ou não podem?"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-06-2020


Isto assim ninguém se entende! 
Mas afinal as pessoas podem juntar-se ou não podem? 

Não podem ir ao Santuário de Fátima mas podem ir à Festa do Avante. 
Não podem festejar os Santos Populares mas se houver uma esplanada com música e um fogareiro com “ belas sardinhas” podem dar um pezinho de dança. 
Podem ir à praia, mas têm que ser contados. 
Podem ir aos centros comerciais mas não podem ir aos funerais que são ao ar livre.

Olha, é a única coisa que me preocupa: ter o que se chamava na minha terra, uma morte vil, sem ninguém a acompanhar-me o corpo à última morada.
Não que tenha muita gente das minhas relações, mas mesmo assim, custa-me pensar que nem um cão terei como companhia no Trajeto até à cova.

Tivesse eu menos uns anos e pernas que ainda me levassem (ou um elevador), haviam de ver se saía ou não. 

Está tudo convencido que fica cá para semente!

Eu que já ando por cá há quase um século, vi epidemias, guerras e tudo e tudo. 
A humanidade não acabou! 
Morreu gente? 
Pois claro que morreu. 
Mas morreu da doença, ou da fome, ou da guerra. 
Hoje quer-me parecer que com tanto disparate e tanta conversa, morre-se mais de susto e de solidão.

Se não estivesse habituada a estar sozinha há anos, e não me valesse esta janela de onde vejo passar a vida dos outros, já estava no vale das tabuletas há muito tempo! 
Imagino aqueles que têm filhos, netos, família e que não têm um abraço, não os veem. 

Bolas, antes a morte, caramba.

Olho o dia lá fora. É já Verão e não há nada tão bonito como o Verão nesta rua.

A rapariga que se aproxima acena-me. Reconheço-a, agora já não me escapa, é a Rosa. Aceno-lhe também.

- Está boazinha? – pergunta-me lá de baixo.

- Ó filha, eu cá boazinha nunca fui e isto com a idade só piora. Mas de saúde estou fina. Não fossem estas pernas que têm mais anos que a cabeça, ainda era rapariga para saltar a fogueira.

Ela dá uma gargalhada e eu fico a pensar que a algumas pessoas o tempo faz muito bem. Não me lembro de a ver rir quando era miúda. Se calhar foi por isso que convidei:

- Queres subir e tomar um chazinho aqui com a velhota?

Estava à espera duma desculpa qualquer, mas para minha surpresa ela disse que sim. 

Abri-lhe a porta e quando fui fechar a janela, quem vejo eu entrar no prédio quase à sorrelfa? A cusca da Perpétua, pois então. Até parecia que estava a seguir a rapariga, diabo da mulher. Capacíssima disso é ela.

Abro a porta e dou de caras com a Rosa de máscara.

- Ai rapariga, tu tira-me lá essa coisa que senão até grito que me vão assaltar.

- Ó D. Socorro isto é para a proteger - justifica ela.

- Pois olha, pelos 50 anos que ainda hei de cá andar, prefiro ver a cara das pessoas ao completo. Entra.

Desde que o meu João se foi embora, nunca mais tive companhia para o chá e bolachas. Soube-me pela vida. Estivemos para ali à conversa até ser escuro.

Falou-me da vida que levara até ter voltado de novo cá para a rua. Tinha sido feliz, e tal como eu também a providência ou o destino a tinham brindado com uma pequena fortuna.

- O meu padrasto foi um verdadeiro pai. Em tudo. 

E pareceu-me ver-lhe os olhos mais brilhantes.

- Então e namorados, marido, como é?

Riu de novo. Incrível como o bichinho do mato se transformou nesta mulher de riso fácil.

- Ai D. Socorro, não tenho pachorra para homens. Não sou nenhuma freira mas… olhe vão uns, chegam outros. Mas ficarem… não. Dá muito trabalho. E também já passei da idade.

- Ora essa! Uma mulher como tu passou lá agora da idade. Que direi eu então…

- Não me diga que há mouro na costa…

- O único mouro na costa há de ser o anjo ou o mafarrico que me levar para o lado de lá. Mas tivesse eu menos dez anos e se aparecesse assim um velhote jeitoso….

Gargalhamos como duas amigas de sempre. Quando se foi embora prometeu voltar.

Nessa noite deitei-me com uma leveza que não sentia há muito. A solidão, mesmo para quem a tem como companheira há anos, é pesada, e aquela tarde assim acompanhada, falando de tudo e de nada, fez-me rejuvenescer.

Porém, a meio da noite acordei sobressaltada ensopada em suor.

De repente, pelo meio dum sonho, relembrei: eu vira-a com um homem, certo dia há muito tempo atrás. Na altura não a reconheci, mas agora não tinha dúvidas, era ela. 

E já não consegui voltar a adormecer.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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