quinta-feira, 30 de abril de 2020

13ª Crónica: "Irra! Toda a manhã à janela a ver quem passava..."

 PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

30-04-2020

Irra! Toda a manhã à janela a ver quem passava (ninguém, pois claro,) e agora que ia fazer uma curta sesta é que começa esta algazarra na rua. Deixa cá ver o que é, não vá ser coisa séria e passar-me ao lado! Era só o que faltava!

Na rua não há ninguém, mas está tudo à janela! E a cantar a Grândola!
Ai minha nossa Senhora, querem lá ver que temos outra revolução?! Mas que grande algazarra! E tudo desafinado, e uns mais à frente e outros a começar… Olha, aí está uma coisa que esta rua nunca teve: um maestro! E bem falta fazia agora! Mas que foi que lhes deu?
Espera lá… isto que dia é hoje, Maria do Socorro? Sim, que com esta coisa de estarmos todos dentro de quatro paredes os dias são todos Domingo! Antes, as rotinas de quem passava na rua iam marcando o calendário: quando o vizinho da frente levava os miúdos, ao fim do dia, eu sabia que era sexta feira, o rapaz que trazia as compras cá a casa (e ainda traz, só que agora é quando calha) vinha sempre à segunda… com tudo isto destrambelhado uma pessoa nem sabe às quantas anda.
Resolvi perguntar. Isto porque eu cá sou assim: não sei, pergunto e acabou-se. Virei-me para cima e “ - psst, psst, ó vizinho...”. 
Ele que cantava (mal, tão mal, valha-lhe Deus!) a plenos pulmões, não me deu atenção. 
Mas isto são muitos anos à janela. Fui lá dentro, peguei numa mola da roupa e atirei-lha. Não é para me gabar, mas sempre tive muito boa pontaria. Se bem que não foi minha intenção acertar-lhe em cheio no olho. Calhou! Mas o efeito foi o que se queria
“ - Que foi? Por pouco não me cega! ”.
Que exagero. Homens!!! Séculos que passem e serão sempre assim. Uns piegas! Fiz-me de velha mansa, que a vida também me ensinou que às vezes mais vale fazermo-nos de tontas e parvas.
“ - O Dr. Vizinho desculpe, mas que é isto? ” 
“ - Que há-de ser? É o 25 de Abril! ” 
“ - Outra vez??? ” 
“ - Não senhora, é a comemoração. Como não podemos descer a Avenida, cantamos a Grândola à janela”
Ah… pois, está bem, faz sentido!
Fiquei ali até aos últimos vivas a Portugal, à liberdade, ao 25 de Abril. Depois as janelas voltaram a fechar-se e ficou tudo em silêncio como antes.
Lembrei-me dum programa onde perguntavam se nos lembrávamos onde estávamos no 25 de Abril. Eu estava aqui, nesta mesma casa. Tinha enviuvado vai pouco tempo, e os patrões disseram que se eu quisesse, podia voltar a ser criada interna e ocupar o meu quartinho de solteira. Embora gostasse muito da minha casinha, disse logo que sim. Afinal, eles eram a única família que tinha em Lisboa e a de Fonte Boa de Cima estava longe demais para ser companhia. A bem da verdade, o que eu tinha era medo de ficar de noite sozinha. Dei por mim a dormir de luz acesa e rádio ligado muito baixinho. Era um ror de dinheiro em eletricidade. Voltei.
Lembro-me que na noite de 24, os senhores tinham ido ao Coliseu e voltaram tarde. Eu tinha por costume (e obrigação, embora nunca me tivessem dito nada) de ficar a pé até que chegassem, não fosse precisarem de alguma coisa... Nessas noites, aproveitava para tomar um calicezinho de vinho fino e ver um bocadinho de televisão na sala, sempre muito atenta aos passos na escada.
Mas nessa noite eu estava estafadinha de todo. Tinha sido dia de polir as pratas e lavar os vidros e, como se não bastasse, o Sr. Engenheiro tinha-me pedido que fizesse um arroz doce para o almoço, já que iam jantar “ - a uma porcaria dum restaurante que o Seabra escolheu e, já sei que vai ser uma barrigada de fome como de costume! ”. O Sr. Engenheiro pelava-se pelo meu arroz doce! Às vezes, parecia um catraio a entrar pela cozinha, a cheirar o ar e a lamber a colher de pau, quando pensava que eu não estava a ver. E eu fingia. Sim, que não ficava bem a um homem daquela posição, andar a rapar o tacho do arroz, mesmo que fosse doce!
Enfim, dizia eu que estava moída e por isso, deitei-me vestida sobre a cama com um olho aberto outro fechado e rádio baixinho. Passaram a canção do festival e cantarolei um bocadinho. Gostava muito do Paulo de Carvalho, e achei, mais uma vez, que lá fora nos tinham roubado, na Eurovisão. Então não era bem mais bonita o “Depois do Adeus “ do que aquela coisa cantada por quatro palhaços vestidos com umas farpelas que nem no Carnaval?
Os senhores chegaram ainda não era meia noite, e eu pude ir finalmente deitar-me. Estava quase a pegar no sono quando começou a tocar a Grândola, que era uma música que eu nunca tinha ouvido na minha vida.  Chamou-me a atenção, porque parecia ter gente a marchar e tinha uma letra linda. Assim a lembrar as modinhas da minha terra.
Nisto toca o telefone, sinto o sr. Engenheiro atender e a desatar a gritar: 
“ - Não me digas, não me digas! ”
Peguei no robe a pensar que era desgraça pela certa. Quem sabe se outro terramoto como o de alguns anos, que levou toda a gente descomposta para a rua (muitas poucas vergonhas se descobriram nessa noite, benza-me Deus. Até o polícia que vivia na rua de baixo apareceu na nossa, em coirinho como a mãe o pôs ao Mundo. Nunca mais lhe pus a vista em cima. E ainda bem!).
Na sala estava já a senhora, e o Sr. Engenheiro pegou em nós as duas e começou a dançar e a rir muito e a gritar: 
“ - É desta, é desta. Vem aí a Liberdade ”. 
Eu não sabia quem era a Liberdade, mas devia ser alguém que não viam há muito tempo e que chegava de longe, para estarem assim tão alegres...

Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

12ª Crónica: "Eu nem queria acreditar. Ao principio nem lhe conheci a voz."

 PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

27-04-2020

Eu nem queria acreditar. Ao princípio nem lhe conheci a voz.
“ - Era para lhe desejar um bom 25 de Abril, pai. ”
O que a quarentena faz às pessoas. Nunca me lembro de eles me telefonarem para isto,  mas claro, agora sozinhos em casa, com vontade de se esganarem uns aos outros, sempre dá jeito ouvir a voz de outra pessoa.
Se calhar fui um bocado seco, concordo, devia ter dito mais qualquer coisa para lá do “obrigado” que me saiu da boca. Uns segundos de silêncio, ele devia estar à espera que eu falasse mais, caramba, há quanto tempo não nos ouvíamos, mas depois disse, a despachar:
“ - Está aqui o Rafael ”
E passou ao irmão.
“ - Olá, pai. Está bem? Já tenho saudades suas…”
Ia-me dando uma coisinha má. Apeteceu-me chamar-lhe todos os nomes, mas respirei fundo, calma Matias, calma, não resolves nada se entrares pelo caminho dos insultos, calma, ainda vais morrer do coração e não do corona vírus. Respirei fundo outra vez.
“ - Ah sim? Calculo… É por isso que não páras de me telefonar e de mandar mensagens…Palavra que às vezes até penso, mas aquelas criaturas não têm mais nada que fazer senão estarem continuamente a telefonar-me? "
“ - Ó pai… O pai sabe como é, temos imenso trabalho, andamos numa correria danada, de um lado para o outro, quando vou para lhe telefonar já é muito tarde. "
Ele ficou calado e eu também. Não me apetecia nada continuar naquela conversa de chacha. Até porque tinha de ligar à Palmira.
“ - Pronto, não se fala mais nisso. Aí em casa estão todos bem? ”
“ - Sim, pai ”
“ - É o que se quer. Então boa noite.”
Fiquei de telemóvel na mão e lá fui ligar à Palmira. Nunca falho uma chamada no 25 de Abril.
A Palmira é professora primária (agora diz-se doutra maneira, mas nunca me ajeitei), reformada há anos. Conhecemo-nos há muito tempo e por acaso, até ajudou muito a Rosa quando ela quis ir para o ensino.
A Palmira tem a mais extraordinária história que eu conheço do dia 25 de Abril, e nunca me canso de a contar. 
No princípio da sua carreira, a Palmira foi colocada numa escola, para lá do sol posto. Uma escola onde não havia nada, rigorosamente nada, nem uma caixa de sólidos para a geometria, nem pesos, nem mapas, nem giz, nem apagador, nada de nada. A Palmira queria ser uma óptima professora, mas não sabia como. Então, todos os meses enviava uma carta ao ministério  dizendo isso mesmo, que assim não podia ensinar, e fazia o rol das coisas de que necessitava. E, para lhes dar graxa, adiantava ainda que a escola nem sequer tinha os retratos dos Senhores Presidentes do Conselho e da República, para pôr na parede, como todas as escolas do país tinham. Nada de resposta. Mas ela não se deixava vencer e no mês seguinte mandava mais outra. E no mês seguinte mais outra. E mais outra. E mais outra. Silêncio absoluto. Até que um dia, vinha ela a chegar à escola e vê a empregada a correr para ela de braços abertos.
“ - Ai, Sra. Professora, nem vai acreditar… O Ministério mandou as coisas…”
“ - Não me diga, Sra. Leocádia…”
Correu para a porta da entrada,  onde estava um grande caixote. Sorria de felicidade, agora ia ser uma professora a sério. Mas, a Sra. Leocádia, excitadíssima, não parava de falar:
“ - Eles estavam cheios de pressa, descarregaram o caixote e entraram logo na carrinha, eu até perguntei se não era preciso assinar uma guia, mas eles que não, que depois se via, mas que tinham de se ir embora... " 
A Sra. Leocádia riu: “ - Ó Sra. Professora, eu até acho que devo estar maluca ou a ouvir mal... Imagine que até me pareceu ouvi-los dizer que em Lisboa estava a haver uma revolução… ”
“ - Uma revolução em Lisboa? Ai, Sra. Leocádia, precisa mesmo de ir ao médico dos ouvidos… "
Riram as duas muito e foram abrir o caixote. Lá dentro nem um sólido, nem um mapa, nem giz, nem apagador, nem nada. Lá dentro, muito bem embrulhados, os retratos do Senhor Presidente do Conselho e do Sr. Presidente da República...
Por isso, eu lhe telefono sempre neste dia e rimos que nem uns doidos.
E quando lhe perguntam, onde estava no 25 de Abril, a Palmira responde sempre: 
“ - A olhar, feita parva, para dois retratos que nunca foram pendurados. ” 
E deixa-me lá ir para a janela cantar a Grândola.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

domingo, 26 de abril de 2020

11ª Crónica: "Tivessem-me perguntado que eu contava-lhes."

 PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

25-04-2020



Tivessem-me perguntado que eu contava-lhes.
Mas como têm a mania de que passo a vida na calhandrice (como se não tivesse mais que fazer, senhores, que tenho sido sempre uma moira de trabalho!), nem me atrevi a abrir a janela. Se alguma coisa sei é porque me contam, que eu cá não pergunto nem me meto na vida de ninguém. Deve ser este meu ar. O meu Isidoro até costuma dizer que se eu fosse homem dava um bom padre: todos se confessam comigo. É sinal que sou pessoa de fiar e que a minha boca é um túmulo, não é verdade?
Mas fiquei a ouvi-las, com a cortina aberta para ver de quem se tratava.
Era a Rosa sim senhora, ora que admiração. A Rosa Maria para sermos exatos, que isto de nome de batismo não se corta pela metade. Já eu sou Perpétua sem mais e o meu Isidoro também não tem outro nome.
Mas quanto à gaiata, pois que aqui nasceu e aqui se fez menina.
Filha única, lembro-me dela sempre um bocadinho mal encarada. Os miúdos não gostavam muito de a convidar para as suas brincadeiras. Geralmente acabavam com ela aos pontapés ou aos murros, numa grande chinfrineira de gritos e ameaças entre crianças e graúdos.
As minhas nunca a suportaram. Também, ela só tinha brincadeiras de Maria Rapaz e não se interessava por casinhas e bonecas. Policias e ladrões, isso sim, com ela sempre do lado dos ladrões, fugindo e batendo na “polícia” como qualquer rufia.
A “coisa” deve ter-lhe ficado do pai, um belo rapagão que trabalhava como tipógrafo lá pró Bairro Alto. Faziam uma família muito bonita, essa é a verdade. A mãe lavava as escadas, recolhia o correio e atendia na portaria do prédio ali ao cimo da rua. Eram tempos difíceis e uma porteira tinha apenas a casa minúscula como paga. Por isso fazia uns biscates, uns arranjos de roupa, que modista nunca foi.
Modista é coisa bem diferente de costureira. Modista fui eu toda a vida, e de gente fina! 
Onde é que eu ia? Ah sim, no belo rapagão, que isto uma pessoa pode ser virtuosa, fiel e temente a Deus, mas não é cega e os olhos também comem e por aí não vem pecado. Nem em pensamento!
O que se falou na altura foi que ele, Francisco Mateus, de sua graça, seria do contra, e uma bela noite, quando vinha do trabalho, encontrou a PIDE à porta.
Que eles estavam todos identificados! Ora quem, a PIDE… sabiam mais a dormir que agora estes polícias todos acordados. Estes e os que se veem na televisão. E sem grandes aparelhómetros!
A verdade, verdadinha, é que por toda a parte havia “bufos”, gente que era paga para informar quem era do partido. Qual partido? Ó senhores, pois se na altura só havia a União Nacional, o partido era o Comunista, está bem de ver.
Eu cá não sei se o homem era ou não comunista, se bem que a gente dos jornais tinha fama de ser toda contra o regime e os tipógrafos não fugiam à regra. Certo, certo, é que o enjaularam.
A Conceição passou um mau bocado, coitada. Até ameaçaram tirar-lhe o lugar de porteira. Ninguém queria ter nada a ver com quem era inimigo da Nação. Mas depois, a vizinhança lá do prédio teve pena, uma mulher sozinha com uma filha ainda pequena, ainda para mais em vésperas do Natal…
Entretanto, dá-se o 25 de Abril. Muita alegria, muita gente aos vivas à liberdade, muitos cravos, enfim o que se sabe. 
Logo no dia a seguir são libertados os presos políticos no meio duma manifestação de gente que esperava à porta da prisão de Caxias. Sai esse, sai aquele, mais a outra (que isto também havia mulheres ao barulho, ah pois! A ditadura nesse aspeto era muito democrática: quem era contra ia dentro, fosse homem, mulher, preto, branco, azul às riscas). Do Francisco nada.
Veio a saber-se depois que tinha morrido dois dias antes, num interrogatório de “rotina”.
Há gente que nasce com uma estrela mazinha. Vejam lá vocês o azar do pobre coitado. Mais um par de horas e teria voltado para casa pelo seu próprio pé.
A Conceição e a filha ainda moraram aqui mais uns anos até que, entretanto, a mãe voltou a casar e foram viver prá outra banda.
Durante muito tempo não se ouviu nem se viu uma ou outra por estes lados. Soube por alguém que a miúda tinha entrado na faculdade e estava a dar aulas não sei aonde.
Há coisa duns bons anos, quem havia de comprar a casita, que entretanto deixou de ser da porteira (ele há lá agora porteiras!) e se transformou num T1? Pois claro, a Rosa Maria!
Não sei como se arranjou, que isto aqui na rua qualquer cochicho é um balúrdio que Deus me livre, e o ordenado de professor não é nada por aí além. Bem o sei eu que tenho duas e vejo o que passam…
O certo é que comprou a casa e aqui se instalou já vai para, se a memória não me engana, mais de dez anos. Ai vai, vai. 
Olha, foi mais ou menos na mesma altura em que apareceu o homem morto mesmo aqui na soleira do prédio.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

quarta-feira, 22 de abril de 2020

10ª Crónica: "Não sei que lhes deu, agora até me dizem adeus..."

  PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-04-2020

Não sei que lhes deu, agora até me dizem adeus quando me veem à janela… Só a Alzira, a bruxa aqui do lado esquerdo, essa é que não dá cavaco a ninguém, só berra se alguém está a fazer barulho, deu-lhe para ali coitada.
Eu às vezes penso nas pessoas que moram neste prédio, e gostava de saber se alguma delas teve uma vida como a minha. Eu sei que elas dizem que eu sou uma bisbilhoteira, que sei a vida de toda a gente, mas isso é porque me interesso pela vida delas. E acabo por não saber muito. Nome, o que fazem agora, se são casadas, solteiras ou viúvas, mas mais nada. Gostava de as chamar cá a casa, uma de cada vez, e dizer-lhes: “conte-me a sua vida”. E tenho a certeza de que nenhuma teve uma vida que se parecesse com a minha. O meu Isidoro às vezes olha para mim e diz: “ - Ó Perpétua, tu quando morreres, levas o papinho cheio”. E levo, sim senhora. Com muito orgulho.
Não é para me gabar mas eu era uma das moças mais bonitas lá da Arruda. Todos os rapazes, ó, estavam caidinhos por mim. E eu ria-me. E não ligava a nenhum deles. E fiz bem. O meu Isidoro  é um santo. Também, o nosso casamento foi abençoado por um santo… ele não podia escapar.
Mas lá na Arruda, aquilo era uma alegria, eu sempre de bâton e pó de arroz, cabelo bem penteado, saltos altos. Os meus pais riam-se. Eu tinha sido uma filha tardia, de maneira que eles deixavam-me fazer tudo o que eu quisesse e achavam graça. Por isso a minha mãe riu no dia em que entrei em casa a correr, teria para aí os meus 17 anos, e gritei:
“ - Ó mãe, mãe, preciso que me compre umas chitas muito bonitas e me faça um vestido lindo de morrer…”
A minha mãe costurava muito bem (isso herdei dela) e só quis saber para que precisava eu de um vestido de chita. Então eu expliquei que tinha acabado de ouvir  que os Bombeiros iam fazer um baile em que as raparigas tinham de ir  todas com um vestido de chita.
“ - O Baile da Chita, é assim que eles lhe chamam, mãe, e depois há um concurso e a mais bonita ganha um prémio”
Até fiquei sem fôlego. O meu primeiro baile. E podia ser escolhida como a mais bonita de todas…
A minha mãe fez um vestido de quatro padrões diferentes de chita. E ainda conseguiu bordar umas pequenas amostras de chita nos meus sapatos.
E eu ganhei.
Nem dormi naquela noite. Acho que o prémio foi uma jarra de vidro, já não me lembro, mas isso era o que menos importava... eu era a mais bonita. Podia ter-me tornado vaidosa, mas não tornei. Mas aprendi a não desperdiçar oportunidade nenhuma.
E não querem saber que o Baile da Chita continua a fazer-se? Li isso num jornal há meses. Eu  até tinha combinado ir lá com o Isidoro que, imaginem, já correu meio mundo e nunca foi à Arruda… Tudo combinadinho, e zás, aquilo estava marcado para Março, vem o raio do vírus e foi cancelado.
Mas estava eu a falar de oportunidades. Vim para Lisboa, trabalhava num atelier de uma modista amiga da minha mãe, e não é que um dia me aparece pela frente o Isidoro?  Pela frente, quer dizer, pelo lado, no autocarro. A transbordar de gente, ele levanta-se e dá-me o lugar (onde é que hoje se faz isso…) eu sorrio e agradeço. Pelos vistos íamos para o mesmo lado, saímos na mesma paragem, e no outro dia também, e no outro, e no outro. Depois um dia ele disse:
“ - Se a menina Perpétua quisesse ir jantar comigo…”
Resumindo e concluindo, começámos a namorar.
E foi então que eu soube que  um jornal, acho que era o “Diário Popular”, estava a organizar em Junho os Casamentos de Santo António. E eram prémios a perder de vista. Não apenas a jarra, como no Baile da Chita, mas coisas a sério: o banquete, o vestido, o carro, o ramo de flores, as alianças, cabeleireira, lua de mel, mobílias, eletrodomésticos, e ainda davam 500 escudos a cada um e escolhiam os padrinhos. Quem é que resistia a uma coisa destas?  Claro que para sermos aceites, havia assim umas coisas chatas pelas quais nós (as noivas) tínhamos de passar. Era preciso sermos vistas por um médico para saberem se nós ainda estávamos, quer dizer, em bom estado, entendem? Como Deus nos tinha posto no mundo… Sem isso, nada feito.
Falei logo com o Isidoro, e pronto. Foi uma maravilha de um casamento… Ainda tenho alguns móveis que nos deram nessa altura. 
Os nossos padrinhos é que a gente nunca mais viu.
Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.