segunda-feira, 20 de abril de 2020

8ª Crónica: "Eu ás vezes nem quero falar muito desses tempos."



  PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza, 
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19.

18-04-2020 


Eu às vezes nem quero falar muito desses tempos. 
O pessoal da minha idade, só quer é esquecer o que passou. E o pessoal mais novo, é de uma ignorância que faz dó.
Também, se ninguém lhes fala nisso, se a escola não os ensina, onde é que eles vão aprender? Nunca me esqueço quando foi o enterro do Soares, a repórter da televisão  foi a uma universidade perguntar se sabiam quem tinha sido Mário Soares, e todos respondiam, “ - Acho que foi um velhote que se meteu na política”.
Estas coisas põem-me doente. Às vezes até consigo perceber que a Patrícia e os miúdos não tenham aguentado. Miúdos… Mas para mim hão-de ser sempre miúdos, que se há-de fazer...
Por altura do 25 de Abril, há amigos meus, professores, que me chamam para eu ir às suas escolas, falar do que foi a ditadura. Costumo levar provas de censura para lhes mostrar. As provas de censura que eu guardo…
É quase uma gaveta cheia… Aquelas folhas de papel cobertas do risco azul, muitas vezes só meia dúzia de frases (o suficiente para que o resto do texto perdesse o sentido), outras vezes de alto a baixo, e outras vezes ainda só com uma frase. Até hoje ainda me rio com uma dessas provas… Eu tinha escrito uma notícia muito breve, meia dúzia de linhas sobre a visita do Almirante Américo Tomás a uma terra do Norte, já não me lembro qual… Sei que começava “Sua Excelência, o Sr. Presidente da República, deslocou-se ontem a… “para inaugurar um fontanário”. E esta última frase foi cortada… Eles não eram burros.
Mas acabei por desistir de levar as provas para mostrar aos miúdos: um dia mostrava uma dessas folhas toda cortada de alto abaixo com dois riscos azuis, e os miúdos encolheram os ombros e disseram: “ - Então, mas por baixo desses riscos azuis pode-se ler tudo o que lá está.”
Acho que ando a fumar demais. Mas dentro de casa é só o que me apetece fazer. Eu até tinha feito um esforço para deixar de fumar, e há umas semanas que não pegava num cigarro. Veio isto e pronto. Metido em casa é cigarro atrás de cigarro. Se não morrer do vírus morro do tabaco. Espero que a Rosa se lembre de me trazer mais uns maços quando voltar cá. Os cigarros não me deixam parar de pensar nesses tempos.
Os nossos telefones estavam todos vigiados. Por isso tínhamos sempre de ter muito cuidado com o que dizíamos. Mas às vezes nem pensávamos.
Um dia, a minha mulher tinha feito uns bolos de que a minha sogra gostava muito. São uns bolos que ainda hoje se fazem, com ovos e chocolate, acho eu, que se chamam “russos”.  E eu liguei para a minha sogra e disse-lhe “ - daqui a um quarto de hora, a Patrícia vai levar-lhe os russos”.
Quando a minha mulher desceu estavam três polícias à nossa porta que a levaram direitinha para a esquadra, e ali estiveram imenso tempo a interrogá-la, onde é que se tinham escondido os russos, e como é que eles tinham conseguido cá chegar e que vinham fazer… Só passado muito tempo é que a deixaram ligar para casa a chamar-me. Ainda me interrogaram, e passaram-se umas boas horas antes de nos deixarem voltar para casa.
Claro que a Patrícia, neta de um tipo da Legião, não aturava estas coisas. Liguei-lhe há dias. Está de quarentena com o Jaime e o Rafael. A Teresa está de quarentena em casa do namorado. Nenhum deles se lembra sequer de me ligar. Se não fosse a Rosa estava para aqui abandonado.
De repente, até me veio à cabeça um anúncio muito antigo que passava na televisão e dizia:  “ - Se eu não gostar de mim, quem gostará? ” 
Estou mesmo parvo, palavra de honra.
Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

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