domingo, 19 de abril de 2020

3ª Crónica: "Foi por um triz que o agarrei já em pleno voo!"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA


As Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza, para se manterem ocupadas durante a quarentena da Pandemia da Covid-19.

08-04-2020 


Foi por um triz que o agarrei já em pleno voo!

Em…(quantos anos tem o bichano?… olha muitos) tantos anos nunca lhe tinha dado para tal. Talvez esteja deprimido por tanto tempo fechado.

Disparate, Matias! Olha agora tu também a falares como estes maluquinhos que acham que os animais são pessoas! Bem, alguns são melhores que pessoas, lá isso. E pessoas que são autênticos animais tenho eu conhecido muitas nesta vida.

Mas retornando ao Trotsky (é o nome do meu gato), apanhei-o a saltar da varanda para a rua numa tentativa falhada de suicídio. A bem da verdade não era grande a queda. Vivo neste primeiro andar desde que casei. O problema era ir buscá-lo lá abaixo e apanhá-lo. Que isto do estado de emergência, mesmo levezinho, traz-me outros tempos à memória, e pelo sim pelo não o melhor mesmo é não pôr o nariz fora de portas. 

Não tenho medo do vírus! Com a minha idade um dia a mais é um crédito no livro do tempo. Receio é os homens e um homem com poder, uma farda ou uma arma, ena pá, torna-se Deus em menos dum fósforo. 

Também não ia poder pedir a ninguém que me apanhasse o gato. Não há ninguém na rua! Enxotei-o para dentro de casa e fiquei à varanda a fumar o meu cigarro e a ver passar o nada. Ou melhor a ver passar a vida. A minha que já leva uns bons quilómetros.

Reparei que não era o único à janela, mas não me admirei. A Sra. Socorro sempre foi o guarda noturno, diurno e de todas as horas, desta rua. Deve ter os bracinhos já tolhidos de tanto tempo na mesma posição. Acenei-lhe. Olhem lá o que a solidão faz às pessoas! Eu que nunca sequer lhe olhei para a cara (não que valesse a pena, verdade seja dita), fiz-lhe um adeus esfuziante como quem reconhece um amigo. Ela retribuiu-me. Afinal sempre mexe os braços! Que idade terá? Uma centena quase de certeza! 

A essa saiu-lhe a sorte grande! Quando a patroa morreu depois de enviuvar, deixou-lhe a casa e o que mais tinha. Estou a ser injusto! 
A Srª Socorro sempre teve uma vida bem desgraçada. 
Casou com um traste qualquer e durante muitos anos via-a descer do eléctrico da Graça, logo pela manhãzinha, ainda quase madrugada (à hora a que eu chegava do jornal a bem dizer). 
Carregada como o preto da Casa Africana, para começar a trabalhar até à noite, na sua senhora. Era assim naquele tempo. As criadas casavam, arranjavam uma casita ou uma parte de casa sabe-se lá onde, mas continuavam a servir que era para isso que serviam. 

Agora reparo… fui politicamente incorreto! Preto da Casa Africana? Coisa mais racista, Matias. Vê lá se não te chegaram as vezes que acabaste com os costados na PIDE! 

Os tempos são ouros e já ninguém se lembra do boneco à porta da Casa Africana, nem tão pouco do marçano vindo de África que corria Lisboa a levar a mercearia a casa. Acho até que a Casa Africana já nem existe! Tudo fechou nesta Lisboa! Antes do vírus nos fechar em casa, já outros vírus mais humanos nos tinham fechado a alma da cidade. 

Volto para dentro. A televisão está sempre ligada mas não vejo um único noticiário! Se quero notícias ligo a CNN ou a BBC que sempre mantêm de alguma forma alguma coisa do que aprendi em cinquenta anos de jornalismo. 

Já não há jornalistas. Agora há “opinion makers” e comentadores, “ eu  diria que…” Dá-me cá uma raiva! Ó homem diria quando? Ou diz ou não diz! Esta gente sabe tanto de português e de jornalismo como eu de fusão a frio.

Antes a Sra. Socorro, que a essa nada lhe escapa. Ora perguntem-lhe lá com quem casou a filha do primo do dono do talho, que por acaso também vendia carne vinda de Espanha e até foi multado por causa disso… Vão ver se não têm a reportagem completa! Desconfio que até o contacto do fornecedor espanhol ela tem. 

Estes jornalistas agora têm falta de garra. Nem me atrevo a dizer que têm garrinha porque é um insulto ao dito e não iam entender. Sabem lá eles quem foi o Tengarrinha. Para se ser bom jornalista é preciso fazer as perguntas certas, tê-los no sítio! Mesmo que o sítio seja acima da cintura que conheci muito boas jornalistas! Mas fazer as perguntas incómodas, correr atrás do que se pretende esconder é perigoso. Tanto ontem como hoje. Eu que o diga! 

Se tivesse menos dez anos entrevistava a cusca da janelinha.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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