domingo, 19 de abril de 2020

2ª Crónica: "Às vezes, aqui sentada sem ninguém ao meu lado..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA


As Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza, para se manterem ocupadas durante a quarentena da Pandemia da Covid-19.

04-04-2020  

Às vezes, aqui sentada sem ninguém ao meu lado, dá-me para pensar no meu tempo de miúda lá na terra. Dizem que quando se está velha, dá-nos sempre para isso, lembrar o que passou e esquecer o que se passa agora. 
Por acaso acho que ainda não estou gagá e lembro-me muito bem do que se passa agora. 
As saudades que eu tenho do João, por exemplo, tadito. 
Ele diz-me que aquilo em Inglaterra também está tão mau. 
Às vezes telefono-lhe mas nem sempre atende, deve estar no hospital. 
Que esses não podem ficar em casa.

Mas, como eu ia dizendo, às vezes dá-me para pensar no tempo em que eu era cachopa, lá na terra, diziam que eu nunca havia de arranjar homem, eram todos muito simpáticos lá na Fonte Boa de Cima, que para dizer a verdade, nunca soube que houvesse uma Fonte Boa de Baixo, mas pronto. 
Mesmo simpáticos, raios os partam, “ó criatura, essa coisa aí na cara foi um cão que te mordeu?”, eu fazia que não os ouvia e eles continuavam, “pobre bicho, deve ter morrido envenenado”, e desatavam a correr e a dizer coisas piores que eu nem quero pôr aqui, que  eu sou uma mulher séria, a minha senhora sempre disse isso. 
O raio da borbulha na cara fazia-me passar vergonhas. 
Antes do meu casamento a minha senhora ainda quis que o Dr. Julião me tirasse aquilo mas o Sr. Engenheiro disse que era preciso fazer uma operação e isso era muito caro, e se eu já tinha arranjado homem, para que era preciso embonecar-me? 
Arranjado homem, é como quem diz. Eles é que me arranjaram, “Socorro, o marçano que vem cá trazer as compras era um bom partido para ti”, e eu até me ri, “ai minha senhora, com aquela barriga, valha-me Deus” e fui limpar a cozinha. Mas a minha senhora insistia, um dia foi à mercearia falar com ele e com o patrão dele, e pronto, semanas depois estávamos casados e a senhora foi a madrinha. 
A senhora gabava-se sempre de ser madrinha de todas as criadas lá de casa. Criadas, sim, quais empregadas domésticas. Às vezes até parecíamos escravas… Eu dormia num quarto ao pé da cozinha, que era também uma espécie de quarto de arrumações, trabalhava de manhã à noite, e só podia sair de quinze em quinze dias, ao domingo, depois de servir o almoço, e com a condição de chegar a horas de servir o jantar. Esta gente de agora  sabe lá o que é trabalhar… 
Por acaso o meu Faustino também não sabia. Ainda se aguentou uns tempos na mercearia, depois o  patrão despediu-o porque ele andava sempre a engonhar e não fazia nenhum, eu até levei as mãos à cabeça, ”e agora, homem, de que é que a gente vai viver?”. Ele encolheu os ombros e saiu porta fora. Foram uns tempos horríveis, nem me quero lembrar, arranjava emprego, era despedido, arranjava emprego era despedido, envelheci muito nesses anos. 
Vou para a minha janela, para ver se isto me passa da cabeça. Ninguém na rua. Por causa desse Corona não sei quantos que manda as pessoas todas para casa. 
A minha janela é o meu cinema. 
Dantes a minha rua tinha tudo o que era preciso, supermercado, farmácia (que não me servia de muito, mas às vezes gostava de lá ir falar com o Sr. Diamantino), a drogaria do Sr. Silvério, uma tasca (onde o meu falecido passava a vida e enfrascar-se). 
Era uma rua a sério. Era bom vê-la da janela. 
Mas aqui há uns anos começou tudo a fechar. Agora estão cheios daquelas casas, com pessoas que entram, estão lá uns dias e vão-se embora, e vêm outras, e estão lá uns dias e vão-se embora, muito esquisito, se querem que vos diga. 
Mas se calhar sou eu que sou velha e não entendo essas modernices.
LINDO! Não acham? Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. Bem hajam!
Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net. 

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