quarta-feira, 22 de abril de 2020

10ª Crónica: "Não sei que lhes deu, agora até me dizem adeus..."

  PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-04-2020

Não sei que lhes deu, agora até me dizem adeus quando me veem à janela… Só a Alzira, a bruxa aqui do lado esquerdo, essa é que não dá cavaco a ninguém, só berra se alguém está a fazer barulho, deu-lhe para ali coitada.
Eu às vezes penso nas pessoas que moram neste prédio, e gostava de saber se alguma delas teve uma vida como a minha. Eu sei que elas dizem que eu sou uma bisbilhoteira, que sei a vida de toda a gente, mas isso é porque me interesso pela vida delas. E acabo por não saber muito. Nome, o que fazem agora, se são casadas, solteiras ou viúvas, mas mais nada. Gostava de as chamar cá a casa, uma de cada vez, e dizer-lhes: “conte-me a sua vida”. E tenho a certeza de que nenhuma teve uma vida que se parecesse com a minha. O meu Isidoro às vezes olha para mim e diz: “ - Ó Perpétua, tu quando morreres, levas o papinho cheio”. E levo, sim senhora. Com muito orgulho.
Não é para me gabar mas eu era uma das moças mais bonitas lá da Arruda. Todos os rapazes, ó, estavam caidinhos por mim. E eu ria-me. E não ligava a nenhum deles. E fiz bem. O meu Isidoro  é um santo. Também, o nosso casamento foi abençoado por um santo… ele não podia escapar.
Mas lá na Arruda, aquilo era uma alegria, eu sempre de bâton e pó de arroz, cabelo bem penteado, saltos altos. Os meus pais riam-se. Eu tinha sido uma filha tardia, de maneira que eles deixavam-me fazer tudo o que eu quisesse e achavam graça. Por isso a minha mãe riu no dia em que entrei em casa a correr, teria para aí os meus 17 anos, e gritei:
“ - Ó mãe, mãe, preciso que me compre umas chitas muito bonitas e me faça um vestido lindo de morrer…”
A minha mãe costurava muito bem (isso herdei dela) e só quis saber para que precisava eu de um vestido de chita. Então eu expliquei que tinha acabado de ouvir  que os Bombeiros iam fazer um baile em que as raparigas tinham de ir  todas com um vestido de chita.
“ - O Baile da Chita, é assim que eles lhe chamam, mãe, e depois há um concurso e a mais bonita ganha um prémio”
Até fiquei sem fôlego. O meu primeiro baile. E podia ser escolhida como a mais bonita de todas…
A minha mãe fez um vestido de quatro padrões diferentes de chita. E ainda conseguiu bordar umas pequenas amostras de chita nos meus sapatos.
E eu ganhei.
Nem dormi naquela noite. Acho que o prémio foi uma jarra de vidro, já não me lembro, mas isso era o que menos importava... eu era a mais bonita. Podia ter-me tornado vaidosa, mas não tornei. Mas aprendi a não desperdiçar oportunidade nenhuma.
E não querem saber que o Baile da Chita continua a fazer-se? Li isso num jornal há meses. Eu  até tinha combinado ir lá com o Isidoro que, imaginem, já correu meio mundo e nunca foi à Arruda… Tudo combinadinho, e zás, aquilo estava marcado para Março, vem o raio do vírus e foi cancelado.
Mas estava eu a falar de oportunidades. Vim para Lisboa, trabalhava num atelier de uma modista amiga da minha mãe, e não é que um dia me aparece pela frente o Isidoro?  Pela frente, quer dizer, pelo lado, no autocarro. A transbordar de gente, ele levanta-se e dá-me o lugar (onde é que hoje se faz isso…) eu sorrio e agradeço. Pelos vistos íamos para o mesmo lado, saímos na mesma paragem, e no outro dia também, e no outro, e no outro. Depois um dia ele disse:
“ - Se a menina Perpétua quisesse ir jantar comigo…”
Resumindo e concluindo, começámos a namorar.
E foi então que eu soube que  um jornal, acho que era o “Diário Popular”, estava a organizar em Junho os Casamentos de Santo António. E eram prémios a perder de vista. Não apenas a jarra, como no Baile da Chita, mas coisas a sério: o banquete, o vestido, o carro, o ramo de flores, as alianças, cabeleireira, lua de mel, mobílias, eletrodomésticos, e ainda davam 500 escudos a cada um e escolhiam os padrinhos. Quem é que resistia a uma coisa destas?  Claro que para sermos aceites, havia assim umas coisas chatas pelas quais nós (as noivas) tínhamos de passar. Era preciso sermos vistas por um médico para saberem se nós ainda estávamos, quer dizer, em bom estado, entendem? Como Deus nos tinha posto no mundo… Sem isso, nada feito.
Falei logo com o Isidoro, e pronto. Foi uma maravilha de um casamento… Ainda tenho alguns móveis que nos deram nessa altura. 
Os nossos padrinhos é que a gente nunca mais viu.
Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

 





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