sábado, 30 de maio de 2020

22ª Crónica: "Acho que nestes meses já fiz centenas de quilómetros..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

28-05-2020

Acho que nestes meses já fiz centenas de quilómetros, para cá e para lá no corredor.

A uma dada altura o corredor range, e não há dia nenhum em que eu não me lembre de mim, a tremer de medo, deitado numa enxerga num vão de escada da loja do meu primeiro patrão.

Eu tinha 10 anos, tinha acabado a 4ª classe, e os meus pais tinham-me mandado para Lisboa, para trabalhar numa drogaria que pertencia a um senhor lá da terra, que tinha feito o favor de me aceitar. Naquele tempo era assim. E de madrugada o meu patrão descia as escadas para ver se estava tudo em ordem, e a escada rangia, rangia, e quando eu ouvia aquele barulho só pensava que eram ladrões, e que me iam matar.

Hoje rio-me. Mas naquela altura puxava o lençol para cima da cabeça e chorava até não poder mais. Nem me quero lembrar. E depois vêm aqueles idiotas dizer que no tempo do Salazar é que era bom... Então não era...

Mas agora, dias e dias e dias, fechado em casa, este é o mínimo exercício que posso fazer.

Depois, paro uns minutos, venho até à janela, estou um bocado a olhar lá para fora, a rua está silenciosa, mas eu sonho que os meus netos vêm ver-me, que já estão a dobrar a esquina, o Lourenço aos berros, “Avô, queres vir com a gente ao jardim?”, o Dinis muito mais calado, ao lado do irmão, a olhar para a janela mas sem dizer nada. Nunca vi dois gémeos tão diferentes.

Depois eu descia, íamos até ao parque, que não ficava longe, baloiços, escorregas, labirintos, era um ver se te avias.

Do que tenho mais saudades, nesta quarentena, é de não os ver, de não os beijar e abraçar. Saudades de os ter cá em casa. 

A Perpétua não gosta muito que eles cá fiquem. Adora os netos, claro, mas está sempre a dizer: “nós criámos os nossos filhos, agora eles que criem os deles”. E às vezes, eu até concordava, a Teresa nem sequer perguntava se eles podiam vir para cá, muito simplesmente telefonava a avisar que os vinha trazer de tarde, e que só voltava a buscá-los na semana seguinte.

Mas quem me dera agora que isso acontecesse.

O Dinis sempre muito sério, sempre a pensar em coisas muito sérias… Às vezes, acordava de madrugada e chamava-me: “Avô…”

“Não vás lá” resmungava a Perpétua, ensonada, virando-se para o outro lado. Mas eu ia sempre. 

O Lourenço dormia numa das camas e nunca acordava. O Dinis estava já sentado na cama ao lado da do irmão e, assim que me via entrar, dizia: “ Avô, estive a pinsar…”

Pronto. Tinha que ser. Quando ele “pinsava”, a coisa era séria. Então eu sentava-me na beira da cama.

“ - Diz lá…”

“ - Avô, quando tu eras pequenino, onde é que eu estava?”

“ - Então, quando eu era pequeno, tu ainda não tinhas nascido…”

“ - Está bem, avô, mas quando eu ainda não tinha nascido, onde é que eu estava?”

Era nesta altura que eu dizia: “é muito tarde, vamos lá dormir, amanhã a gente conversa…”

E as perguntas eram todas deste género. E o que é que se responde a isto?

O Lourenço, esse só quer jogar futebol no corredor. E a Perpétua, que ainda é mais maluca com os netos do que eu, embora não o queira admitir, uns meses antes desta pandemia, comprou um cesto de basquete na loja dos chineses e pregou-o no corredor, na porta que dá para o quarto deles, para se treinarem a encestar...

Agora, até dá jeito, porque pelo meio dos quilómetros que faço no corredor, de vez em quando, paro e tento encestar umas bolas. 

Admito: não tenho jeito nenhum, mas sempre é exercício.

Por isso é que a Luísa, está sempre a pôr defeitos nesta casa.

E nós ralados.


Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

21ª Crónica: "Esta noite não preguei olho..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA 

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

25-05-2020


Esta noite não preguei olho de maneira nenhuma.

Andei para ali às voltas, vim fazer um chá de camomila que, embora sempre me soube a xixi, dizem que acalma, rezei o terço, encomendei-me ao meu Santo António, mas nada … Não houve maneira de sossegar!

Por instantes disse mesmo para comigo: “Maria do Socorro é desta que vais prestar contas a Deus”. Já aqui disse que medo, o que se chama medo de morrer, não tenho. Afinal não posso fazer nada para a evitar e se outros bem mais novos já foram, lá terei que ir na minha horinha.

Do que tenho receio é da dor ou de ficar para aqui feita uma alface a murchar aos poucos. Mas do que eu tenho mesmo pânico é de ter que prestar contas a Deus! Sei lá eu como vai ele reagir. Que eu nunca fiz mal a ninguém, pelo menos de propósito. Mas tenho comigo este peso que não me larga, embora o Sr. Padre Ezequiel me tenha dito que Deus era misericordioso e que não tendo havido intenção, um grande pecado fica logo mais pequeno e encolhe. 

O que na altura não encolheu foi a penitência: um sem fim de rosários e cinco contos para missas. Naquela altura, cinco contos eram uma fortuna, mas eu podia e a minha alma precisava. Vim mais leve em todos os sentidos. Mas à medida que o tempo passa… não sei… sinto um peso cada vez que me lembro.

Passam-se meses, anos, até que não recordo, mas ontem estava eu a folhear os álbuns e a comentar cá com os meus botões que, por terem tantos anos como eu, são moucos e já precisam que lhes fale em voz alta: “Olha quem ele é…quem havia de dizer, ali, aos brindes com o Marcelo (não é este, o outro) e tão revolucionário que está. E esta aqui, hei? Ou me engano muito ou o vestido que leva foi a minha senhora que lho emprestou. É vê-la.

Foi aí que dei de caras com ele. Ainda tive um segundo de dúvida, que isto a vista já não é o que era. Fui por isso buscar a lupa que o senhor Engenheiro usava para ver os selos. Lá estava, não havia engano possível, aquela sobrancelha única que cobria ambos os olhos não deixava dúvidas, mesmo a mim, que só o vira por breves segundos ali estendido na soleira da porta, mais teso que um bacalhau.

Folheei o resto do álbum, fui buscar outro e outro. Ao todo, aquela cara aparecia em pelo menos sete fotos. Umas mais próximas (que até me faziam saltar) outras mais ao longe. Sempre com um sorrisinho que arrepiava. Ou então era eu que já via o fantasma do desgraçado a olhar-me do fundo daqueles álbuns forrados a couro.

Afinal o individuo não era um bêbado qualquer, como disse a polícia no outro dia. Pois se ele estava naquelas festas, naquelas fotos, tinha que ser alguém pelo menos com alguma importância. Duma coisa eu tinha a certeza: não vivia cá na rua e duvido que fosse cá do bairro. Naquele tempo eu conhecia toda a gente e se não lhes sabia os nomes, as caras nunca me falhavam. 

Não, daqui não era. Fosse como fosse, o certo é que aqueles olhos debaixo da sobrancelha negra como um carvão, não me deixaram dormir a noite toda.

Abro a janela. O tempo parece de Primavera (eu não digo que os astros andam malucos!) e fico ali a olhar mais para o passado do que para quem passa, às vezes a janela leva-me a outros tempos …

Vejo passar a senhora agente da PSP que todos os dias sobe a rua a passo lento. Coitada, esta nem pôde ficar sossegada em casa e proteger-se do bicho. Ela e todos os colegas, benza-os Deus, que com as pessoas dos hospitais foram o exército português contra o vírus.

Diz-me adeus e eu também lhe aceno. Atravessa para este passeio e pergunta-me:

– Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Penso para comigo que, tirando o facto de ter agora um fantasma duma só sobrancelha a atazanar-me a memória, estou bem sim senhor.

– Só precisava que me tirassem dez anos de cima, respondo-lhe.

Ela ri:

– Ah, mas isso já não é com o meu departamento.

– Pois, mas nem imagina o que eu fazia se me voltasse a apanhar com 82 anos!!!

Gargalhou e disse-me adeus. A gente nova não tem ideia da diferença que faz uma década a mais.

Se eu tivesse oitenta anos…

Depois, lembrei-me que foi há dez anos que o desgraçado morreu aqui à porta e por isso, só por isso, dou graças por ter mais uma década em cima.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 


sábado, 23 de maio de 2020

20ª Crónica: "Se eu ainda estivesse no ativo..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-05-2020



Se eu ainda estivesse no ativo, as crónicas e artigos que eu não fazia agora, aqui da minha janela…

Nestas minhas andanças jornalísticas, ainda conheci uma filha do Eça de Queiroz. Imaginem como sou velho… 

A D.Maria, Marquesa de Ficalho, uma pessoa adorável… Sempre sorridente, deu-me uma bela entrevista. E ela contava que um dia, viviam então em Paris, estava ela de cama com gripe, quando o pai chega:

“ - Então, minha filha, como passou o seu dia?”

“ - Meu pai, aborreci-me”

Então ele, meio zangado diz-lhe:

“ - Aborreceu-se? Então, a menina tem a sua cama ao lado da janela que dá para o jardim, pode ver as árvores, as flores, as nuvens... e aborrece-se?”

Ela ria a contar isto e eu, nunca me esqueci. Porque eu também sou assim. Basta olhar pela janela e temos um mundo de histórias à nossa frente.

Mas, faz-me falta um lugar para as publicar. Uma vez jornalista, sempre jornalista, não há volta a dar.

Mas também, agora onde é que há jornais? Estão todos a fechar, ou passam a digital, ou publicam coisas que Deus me livre.

O meu último jornal (um dos que vão fechar, não tarda…) tinha tudo: tipógrafos que sabiam mais do que muitos de nós, café, cantina, médico. O médico era pago à peça. Quer dizer, por cada trabalhador do jornal que atendia. Por isso, de vez em quando, mandava chamar alguém para ir ao consultório, a ver se ganhava mais uns cobres.

Havia lá uma colega, a Virgínia, a mais velha de nós todos e que nos fazia a vida negra, para além de ser ignorante que até fazia aflição. Acho que tinha sido regente escolar (quem é que hoje se lembra disso...) antes de entrar para o jornal, ao que parece por via horizontal, mas pronto, isso era com ela. Quando eu entrei, ela já lá estava há muito, e não suportou que eu ficasse a chefiar a secção dela... Nem me quero lembrar…

Um dia, estava eu a ler um texto dela, sobre uma exposição que tinha ido ver à Gulbenkian. De repente, levantei-me da minha mesa, entrei pela sala do director adentro, pus-lhe o texto na mesa e disse:

“ - Corrija-o o Sr.Director, que se eu toco no texto dela, ela mata-me.”

O director olha para mim, admirado, testa franzida:

“ - Que é isto?”

“ - Leia, Sr.Director. É a notícia de uma exposição de ícones da Bulgária, que está na Gulbenkian.”

O nosso director era um homem sempre muito sério, e ainda hoje me lembro que não parava de rir.… Ria, ria, ria e ia dizendo:

“ - Ó homem, emende lá isso” e eu: “ - Nem pense, mande-a chamar e entendam-se.”

O título do texto era apenas: “Exposição Iconoclasta na Gulbenkian”

Saí, fui para a minha secretária na altura em que um contínuo apareceu e lhe disse:

“ - D. Virgínia, o Sr. Diretor quer falar consigo.”

Não sei o que se passou, sei que voltou à nossa sala, pegou no casaco e foi-se embora.

Detestava toda a gente, menos o médico, que achava “muito competente e muito bem parecido”. Uma tarde resolveu ir à consulta.

“ - Então quais são as suas queixas, D. Virgínia?”

“ - Olhe, Sr. Doutor, nem sei bem… É um cansaço, uma falta de energia… Às vezes acho que estou a ficar velha…”

“ - Não, D. Virgínia, a senhora não está a ficar velha, a senhora é velha!”

Nunca mais lá voltou, claro.

Raio da mulher. Era tão má colega, mas tão má colega, que no dia em que se foi embora nem teve jantar de despedida, como fazíamos sempre aos colegas que saíam. Eu ainda tentei, vá lá vamos fazer o jantar à velha, não custa nada, mas todos disseram que nem pensasse nisso. Foi a única que saiu assim, a seco. A única.

O meu jantar até teve direito a meia página de reportagem no jornal. Era tudo gente boa. Tenho saudades de alguns deles, mas a verdade é que já morreram quase todos.

Soube que a Virgínia morreu com 102 anos. Vaso ruim não quebra, é mesmo verdade!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

19ª Crónica: "Desde que os homens começaram a mexer nos astros..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

20-05-2020

Não me venham cá com histórias, desde que os homens começaram a mexer nos astros o tempo nunca mais foi o mesmo!

Ainda a semana passada esteve um calor que parecia Verão e hoje esta chuva de granizo, cada pedra do tamanho de berlindes.

Antes, havia quatro estações. Hoje, estações só as do metro, porque do tempo, uma pessoa não pode confiar no calendário. Tanto pode estar um calor de derreter em Outubro, como nevar na Serra da Estrela em pleno Junho. Mas quem mandou aos homens, andarem lá por cima a mexer no que estava quieto? Adiantou alguma coisa terem ido à Lua? Já há excursões como quem vai a Fátima? Encontraram petróleo? Ouro? Não, pois não? Então ficassem muito quietinhos e já não tinham dado cabo desta coisa toda, que está uma pessoa muito bem a arrumar a roupa de inverno, a tirar os cobertores da cama, e pimba, toma lá com menos dez graus que o dia anterior e toca a pôr tudo como estava!

Uma coisa é certa: hoje não está tempo de janela.

Ponho-me a andar pela casa como uma barata tonta. Não é que não tenha com que me entreter. Uma mulher em casa, se quiser, tem sempre trabalho. Acontece, que eu nunca senti esta casa, que os senhores me deixaram em testamento, vai para mais de 40 anos, como verdadeiramente minha.

Está claro que já não durmo no quarto de criada, que foi meu tantos anos, mas também não durmo no quarto dos senhores. O meu, é o quarto das visitas, que tem várias vantagens, entre elas, ter uma janela diretamente para a rua. No fundo, sinto-me uma visita que foi ficando. Também nunca usei a loiça boa ou a baixela de prata, e das joias da senhora, que ainda são algumas, uso apenas um fio com um “registo” em filigrana de Viana e a imagem de Nossa Senhora. Anéis só as duas alianças, a minha e a do meu falecido e os brincos são de viúva, como está bem de ver.

Até há um ano, quando pensava na morte (sim, que eu embora não pense todos os dias nisso, não tenho ilusões, um dia destes chega a minha hora!), ficava a pensar a quem iria deixar tudo isto que me caiu no colo, depois de muitos anos de dedicação, é certo, mas que foi completamente inesperado. Filhos, não tenho. Devo ter sobrinhos netos e primalhada que nunca mais acaba, lá na terra. Mas é gente que não conheço, que nunca me quis conhecer, e muito menos, saber se eu precisava dum copo de água. Ao Estado também não, era o que faltava. À igreja tão pouco. Sim, que eu cá sou católica, sim senhora, mas quando olho para os padres e para as freiras, não os vejo nem rotos nem magros. Deve haver, lá para África, mas por cá via-os muito bem, obrigada. Decidi pois, que deixaria tudo a alguma missão lá longe onde precisassem.

Liguei para o escritório do Dr. Estêvão, que sempre foi o advogado dos senhores e foi quem me deu a notícia da minha herança, e se pôs ao alto com uns sobrinhos do Sr. Engenheiro, que aí apareceram passados poucos dias do falecimento da minha senhora. Olha, aos enterros não foram eles, mas ao cheiro do dinheiro apareceram todos! Durante meses, mal batiam à porta, toda eu tremia. E o Dr. Estêvão sempre calmo: 

” - A D. Socorro não se apoquente que está tudo escritinho, como manda a Lei. Bem podem correr e saltar que de si ninguém lhe tira um tostão”. 

Pois, mas tiraram-me muitas horas de sono, isso tiraram. 

Do escritório, informaram que o Sr. Doutor falecera há muitos anos e que até o filho se reformara já, deixando nas mãos do neto o negócio da família.

Pronto, que fosse o neto. O que eu queria era fazer o meu testamento, expliquei. Depois de me fazerem esperar uns bons minutos, disseram que o sr. Doutor só poderia receber-me, ou vir cá a casa (e neste caso seria mais caro, foram logo avisando) depois das férias de Verão, lá para meio de Setembro. Como estávamos em Abril disse que sim senhora, que esperava que por essa altura ainda fosse viva, e ficou feita a marcação.

Mas Deus escreve direito por linhas tortas, sempre ouvi dizer.

Quando o João me informou que ia para Inglaterra porque aqui não se safava, não me lembrei logo. Foi depois, passados meses, telefonemas, o cuidado que demonstrava, que decidi. O que me fora dado, por intervenção dum anjo da guarda qualquer, iria para o meu anjo da guarda, que um dia surgira na forma de rapaz da TV Cabo.

E quando o doutorzinho aqui chegou, muito agastado por ter que subir um ror de escadas e a arfar, pois embora jovem tinha bem uns cem quilos naquelas perninhas, fez-se o testamento. Ainda teve a lata de dizer que deixar tudo a um desconhecido era perigoso, que se calhar era melhor deixarmos para mais tarde, que pensasse melhor…

Eu cá nunca tive papas na língua e sempre lhe fui dizendo que desde Abril até àquele momento, tinha pensado tudo o que havia para pensar e que tempo, era coisa que já me ia faltando. Assim, fez-se a coisa. Eram precisas duas testemunhas, anunciou. Nem de propósito bateram à porta. Era o marçano com as compras.

" - Ó rapaz, tu sabes assinar? – perguntei-lhe."

Ele olhou-me ofendido. Então não havia de saber? Essa agora! Para que eu soubesse, ele tinha a “escolaridade obrigatória” completa. Bem que devia ter a escola toda, devia, com um professor como o patrão… mas o importante é que sabia escrever.

" - Vou precisar do seu Cartão de Cidadão, disse-lhe o doutor com ar de quem quer ver se de alguma forma se livra desta e ganha tempo. Se calhar queria ver se me convencia a deixar-lhe tudo a ele. Isto há gente capaz de tudo, que eu bem vejo televisão.

" - Isso agora, tenho que voltar ao minimercado, que deixei a carteira no casaco."

Empurrei-o porta fora e mandei-o ir buscar o documento num saltinho e de passagem, que batesse à porta da vizinha Perpétua, que estava em casa de certeza, e lhe dissesse que subisse e trouxesse com ela o Cartão.

Passados quinze minutos, estávamos os cinco (sim, que o Isidoro nunca larga a mulher, e queria inteirar-se do que se passava) no escritório do Sr. Engenheiro, onde eu só entrava para limpar o pó, mas que sempre dava solenidade à coisa, a assinar as minhas últimas vontades.

Só espero morrer depois deste bicho se ir embora, para que o meu João venha ao funeral, e eu possa ver a cara de espanto quando se aperceber que lhe saiu a sorte grande.

Ai, mas que tempo triste este… Olha, com tudo isto, lembrei-me que desde essa altura, que não ponho os pés no escritório do Sr. Engenheiro e deve estar uma poeirada de meter dó. Não sei por onde entra tanto pó, Virgem santíssima. Pois se nem janela tem.

De passagem, vou folhear uns álbuns de fotografias. Não que conheça alguém que lá esteja para além dos patrões, mas sempre vejo gente.


Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

terça-feira, 19 de maio de 2020

18ª Crónica: "O meu Isidoro é mesmo um amor de pessoa."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

18-05-2020


O meu Isidoro é mesmo um amor de pessoa.

Bendita a hora em que eu o encontrei naquele autocarro, a caminho da modista onde eu trabalhava… Será que ela ainda é viva? Claro que não, que disparate... Então ela era muito mais velha que eu… Às vezes perdemos um bocadinho a noção do tempo.

Mas dizia eu que o meu Isidoro é um anjo. As coisas que ele faz para me poupar arrelias… Como se eu não soubesse que ele manda dinheiro à Luísa todos os meses… De vez em quando, sai e diz: “ - Já volto ”… Nunca lhe pergunto nada, mas sei que é o tempo de ir ao multibanco na rua de cima.

Às vezes rio-me, porque o marido da minha patroa, no atelier, que andava sempre por ali a cirandar e a dar ordens, de vez em quando dizia: “ - Vou ao carro”. E a gente nunca mais o via. Por isso, quando alguma de nós saía, para ir ter com o namorado, dizíamos sempre umas para as outras: “ - Olha, aquela vai ao carro… ”

O Isidoro pode refilar, porque uma tem mau feitio e a outra gasta dinheiro a mais, mas no fundo, ele adora as filhas.

A primeira a sair de casa foi a Luísa, sempre a mais independente. Foi fazer Erasmus na cidade de Gante, na Bélgica, e claro que ele não se aguentou sem lá irmos visitá-la. E ainda bem, nós não viajamos muito, claro, mas foi uma das cidades mais bonitas que alguma vez vi na minha vida. Incluindo a Arruda…

Depois, já a Luísa andava lá por fora, a Teresa anunciou que se ia casar. Preparatórios para o casamento, convites, o fato, eu andava ali numa correria o dia inteiro, e nem notei como o Isidoro andava amarelo, magro, sem apetite. Até que uma noite, quase num murmúrio, disse-me:

- Devo ter um cancro. Mas não digas nada a ninguém. 

Fiquei sem palavras.

- Um cancro? Mas como é que tu sabes que tens um cancro?

- Fui ao médico.

-E não me disseste nada? E o que é que ele mandou fazer? 

Respirou fundo.

- Mandou-me ir amanhã ao hospital fazer uma endoscopia.

- Já amanhã? É porque deve ser muito grave.

Voltou a suspirar.

- Vou contigo.

- Claro que não vais, tens as coisas para arranjar, e depois…

- Não tem discussão, vou e vou mesmo.

No dia seguinte lá fomos. Nem conseguíamos dizer nada um ao outro. Ele entrou logo, sem sequer olhar para mim. Naquele tempo as endoscopias ainda eram feitas sem anestesia. Quando, algum tempo depois voltou à sala, vinha ainda mais amarelo, a transpirar, muito cansado. Sentou-se ao meu lado, à espera que o médico viesse falar connosco. Mal conseguia respirar. Passado algum tempo, pegou na minha mão:

- Olha… Devo ter de ser operado, claro… Por isso peço-te que não digas nada a ninguém, quero que se faça tudo como estava combinado, o casamento, a festa, a lua de mel, tudo. Que ninguém sonhe. Têm tempo de saber depois. Não quero perturbar nada.

Nem respondi. O médico levou bastante tempo a chegar à sala. Quando chegou, vinha a rir, como se lhe tivessem contado alguma anedota. Fiquei furiosa. Não era maneira de chegar junto de um doente. Levantei-me.

- Então, Sr. Doutor?

- Então? Sabe o que é que o seu marido tem? Uma gastrite. Receito-lhe uns comprimidos, uma dietazita e fica fino.

Riu mais um bocado e depois exclamou:

- Ai homem, homem… Sabe o que é que você tem? É aquilo a que nós chamamos a síndrome do ninho vazio… Os filhos casam, saem todos de casa, e vocês não sabem o que fazer à vida… Vá-se lá embora, e divirta-se no casamento…

Até chegarmos a casa eu fui sempre naquela terrível indecisão: ou lhe dou um estalo naquela cara, ou fico muito feliz porque não tem nada.

Ai os homens são tão complicados…

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

17ª Crónica: "A minha vida divide-se entre a sala e a varanda."

  PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

14-05-2020



A minha vida divide-se entre o sofá da sala e esta varanda, por isso vi-a chegar e acenei-lhe:

– Espera aí que já desço.

Abri a porta do prédio e ficámos a olhar-nos por cima das máscaras.

– Não devias ter descido Matias! – censurou ela.

Mas vi que estava contente por não termos um vidro a separar-nos. Ah o valor das pequenas coisas!…

- Trouxe-te uma surpresa... linguados. Mas vais ter que ser tu a grelhá-los, que isto é coisa que não se pode aquecer. Vem também a calda para o arroz de tomate e é só…

Durante uns minutos deu-me as instruções de culinária. Eu praticamente não a ouvia. Pela primeira vez na minha vida entendi a importância do contacto com os outros, mesmo a dois metros de distância. Subi as escadas e de repente tive um ataque de riso tão forte que me fez perder o fôlego. Ou foi isso ou o raio do tabaco. Lembrei-me duma história de há muitos anos e que ainda hoje me faz rir. Mas para a contar, tenho que recuar a uma outra de que me lembrei ontem à noite, enquanto via televisão.

Como disse, evito ver programas de informação, porque, salvo honrosas exceções, passaram a verdadeiras feiras de vaidade, em que o protagonista é o ardina de serviço. Ardina sim, que chamar jornalista ou mesmo repórter a alguns deles, é um insulto a toda a classe.

Mas o programa da Clarinha não perco nunca! Ela sim sabe o que é uma entrevista e não a transforma num debate para se dar ares. Deixa o entrevistado expor as suas ideias, faz as perguntas certas… enfim, é uma jornalista como deve ser.

Também, pudera, bebeu-o no leite, está-lhe no sangue. Filha de dois grandes nomes do jornalismo dos anos 60, cresceu numa redação. Não, não é figura de estilo, é mesmo verdade! Naqueles tempos, a vida duma mulher, profissional e mãe, era um tormento e, raras eram as que conseguiam conciliar tudo. A Helena era uma delas. Brilhante repórter, vivia “em pecado”, com um nome respeitado no meio, quer como jornalista quer como escritor e de certa forma temido pelo poder. O Manuel tinha, como ninguém, essa faculdade inata de dizer o que lhe dava na gana, de tal maneira que parecia estar a fazer elogios, quando no fundo, punha muitas carecas à mostra.

Sem apoios familiares, nem dum lado nem do outro, quando a Clarinha nasceu, passado pouco tempo, a Helena voltou ao trabalho de alcofinha de folhos e lá dentro a catraia. Houve reuniões da Direção e blá blá blá, mas pela força da Jacinta, que era a outra mulher que a redação tinha e que estava ali, desde que o edifício fora construído, ou mesmo antes, e que quando lhe davam os azeites ia tudo raso, a menina foi autorizada a acompanhar a mãe no local de trabalho. Coisa impensável, hoje em dia, se bem que nalguns países por essa Europa sejam permitidos cães. Incongruências, mas pronto.

Dou de barato que aquele não era o melhor ambiente para uma criança. A redação, era um nevoeiro de cortar à faca, com toda a gente a fumar, o barulho mais que muito, o frenesim nem se fala. Mas a Clarinha dormia placidamente e não me lembro sequer de a ouvir chorar. Certamente que o fez mas… não me lembro, juro.

Sempre que a Helena tinha que ir para a rua, entregava “a encomendinha” a um de nós, que ficava responsável por mudar-lhe as fraldas e dar-lhe o biberon. E assim ia passando de secretária em secretária.

Era a nossa mascote, a menina nas mãos das bruxas, todos nós tios e padrinhos da catraia, competindo por um sorriso ou pelas primeiras palavras.

Mas o tempo não pára, e a miúda foi crescendo. Um dia, não sei quem teve a ideia de fazer um cercado, agora chamar-se-ia um parque, onde a miúda se pudesse sentar e brincar com os inúmeros brinquedos que cada um ia trazendo.

Isto, hoje em dia, era caso de violência e queixa à CPCJ. Na altura era apenas uma forma de amor.

O parque tinha uma portinha e, não raras vezes, um de nós tirava uma pausa para entrar e brincar com a cachopa.

Veio a revolução e com ela a alegria, o frenesim da liberdade de imprensa, as lutas sindicais, os novos tempos. Os jornais eram de facto o quarto poder e isso, sentia-mo-lo a cada momento. Muito mudou nesses primeiros meses. O que não mudou foi a presença da Clarinha que já fazia parte “do corpo redatorial”.

Um belo dia, estava a redação ao rubro, já não me lembro porquê, a Helena na rua com fotógrafo para “cobrir” uma manifestação qualquer e, de repente, alguém pergunta:

– A Clarinha?

Olhámos uns para os outros, olhámos para o parque com a portinha aberta e gelámos. A menina tinha desaparecido! Eram tempos incertos, falava-se de raptos, de revanchismos…

Tudo parou naquela redação. 

- “Clarinha, Clarinha…” - gritávamos. 

E era ver homens feitos já de lágrima no olho e de joelhos, espreitando por debaixo das secretárias, abrindo armários… mas da miúda, nem sinal. O próprio Diretor suava e dava ordens e contraordens para a procurarmos na rua, ver se alguém a tinha visto noutro andar.

– Mas se a miúda ainda nem gatinha, pá!

Foram horas de angústia, até que alguém foi dar com ela num cantinho junto ao armário do arquivo, por baixo duma série de jornais a dormir de dedo na boca. A catraia não gatinhava, porque já sabia andar, e nós, não nos tínhamos dado conta. 

Quando a Helena chegou, encontrou uma redação em festa e a Clarinha como uma princesa, andando de um para o outro lado ao chamamento de quem se tinha esquecido que havia um jornal para fazer. Foi mais uma noitada, mas valeu a pena.

Que tem isto a ver com os linguados? Nada, a não ser o facto de anos mais tarde a menina feita mulher e com um canudo de Comunicação Social nas mãos, ter aparecido na redação a pedir para fazer um estágio. Nessa altura já a mãe se dedicava apenas à literatura e eu era Diretor da “Xafarica”. 

Não vinha sozinha. Acompanhava-a um espirra canivetes engomadinho que apresentou como colega e que também se propunha a ser estagiário.

Mandei-os para casa com a promessa duma resposta no dia seguinte. Eram tempos diferentes e aceitar um (neste caso dois) estagiários, representava uma despesa, porque ali ninguém trabalhava de borla. Mas tratava-se da Clarinha. Da nossa Clarinha. Está bem de ver que a resposta seria positiva. E por arrasto lá viria o engomadinho. A primeira prova de fogo era simples:

– Vão para a rua e amanhã quero uma notícia na minha secretária até ao meio dia.

No dia seguinte, já a Clarinha tinha ocupado uma das secretárias e dedilhava na máquina a toda a pressão, apareceu o engomadinho. Sentou-se, fez estalar os dedos como se fosse dar um concerto de piano, olhou à sua volta e perguntou alto e a bom som:

– Onde é que estão as laudas?

Eu que também estava por ali na altura, olhei em volta e vi uma dúzia de olhos espantados.

- As quê??

– As laudas, o papel onde se escrevem as notícias para depois irem para a tipografia. – explicou o doutor do alto da sua sapiência.

A gargalhada deve ter-se ouvido no Rossio.

- Ó pá, o que tu queres são os “linguados”. Para seres jornalista, aprende primeiro a gíria!

É hoje director duma cadeia de televisão. 

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

16ª Crónica: "A Perpétua que nem sonhe."

    PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

11-05-2020

A Perpétua que nem sonhe. Ainda bem que estava aqui à janela e não ouviu o telefone.

A Luísa até é boa rapariga, muito melhor feitio do que a irmã, mas palavra que não sei o que ela faz ao dinheiro. Toda a gente sabe que as professoras não ganham muito, sobretudo para o trabalho que têm. Mas a Teresa também é professora, pode ter lá o seu feitio, que tem, mas nunca nos pede dinheiro. E tem marido e filhos, e o Vasco também não ganha muito na empresa. 

Pois a Luísa agora queria saber quando é que eu lhe mandava os 100 euros, se eu não via que já estávamos quase a meio do mês. Lembrei-lhe que o multibanco é longe, nem sequer nesta rua, e que eu não me arriscava a lá ir, ela que se arranjasse e desliguei.

Que a Perpétua nunca saiba que eu transfiro, todos os meses, 100 euros para a conta da Luísa, só para não a ouvir. Claro que ela nem agradece, é como se fosse obrigação minha.

Mas se ela tem um ordenado baixo, porque é que está sempre a comprar roupa nova, e vai sempre a restaurantes caros (bom, aqui se calhar é para ver se arranja namorado…), e todas as semanas ao cabeleireiro. Coitada, agora deve sofrer muito, lojas fechadas, restaurantes só a venderem takeaway… Mas, também por isso, deve estar a gastar menos. Palavra que não entendo.

Há uns tempos, ligou-me a dizer que o armário do quarto estava muito velho e precisava que eu lhe emprestasse dinheiro para ela comprar outro. Disse-lhe que podia mandar buscar o armário aqui da sala que estava como novo.

“ - Ó pai, que disparate… Lembra-se quando comprou esse armário? ”
“ - Não comprei. Deram-me, no nosso casamento...”
“ - Mais me ajuda… As coisas que davam nos Casamentos de Santo António, eram horríveis, tão Estado Novo… Nem sei como vocês ainda não o deitaram fora…”

Pode não ser estilo D. João V, mas é um armário muito jeitoso, cabe lá tudo e mais alguma coisa. Mas para ela não servia. E lá lhe dei dinheiro para ela comprar um móvel novo no IKEA, onde ela acha sempre que há móveis lindos de morrer.

Sempre que falo no IKEA, lembro-me logo de um dia, há uns anos, em que fui com a Perpétua a Fátima. Somos católicos, embora daqueles que não vão todos os dias à missa. Muito menos a Fátima. Mas, durante para aí uma semana, a Perpétua só falava da promessa que tinha feito quando a mãe estava muito mal, e que nunca tinha cumprido, e mais isto, e mais aquilo. E pronto, lá fomos. A Basílica tinha tido obras há pouco, todas as bancadas de madeira nova, a resplandecer. Até estava a gostar de estar ali, palavra, só nós, naquele silêncio.

Não estávamos lá há mais de cinco minutos, quando a Perpétua se levanta, pega no meu braço, empurra-me e diz: “ - Vamos embora, que eu não aguento isto ”. Lá corri atrás dela, sem perceber nada, mas o que é que ela não aguentava, no meio daquela Paz e daquele silêncio? Então a promessa? Cá fora, suspirou fundo:

“ - Desculpa, mas não me conseguia concentrar ”
“ - Porquê? ”
“ - Porque tudo me cheirava ao IKEA ”

Já passaram uns bons anitos, se calhar quando esta quarentena acabar, vou combinar com a Perpétua e voltamos a Fátima. E havemos de rir muito. 


Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 
Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

sábado, 9 de maio de 2020

15ª Crónica: "Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido."

   PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

07-05-2020


Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido (bendita Rosa!), um copo de vinho e sentei-me na sala defronte da televisão, pronto para jantar. Sempre detestei comer sozinho e o aparato faz-me companhia, à falta de melhor. 

Ora cá está algo impensável antes desta prisão forçada e sobretudo, nos tempos em que esta casa estava cheia de vida. As refeições sempre foram feitas na sala de jantar onde não existia televisão, com mesa a preceito. Nisso eu e a Patrícia éramos muito parecidos. Coisas de educação que não se perdem, por muitos anos que passem. Mesmo aqui, de tabuleiro nos joelhos, há preceitos de que não abdico: naperon à laia de toalha, guardanapo de pano, talheres adequados e tudo, tudo. O que o berço dá, só a tumba tira. No meu caso, não apenas o berço que, senão foi de ouro pelo menos foi de prata fina, mas o Colégio Militar, onde meus pais me deixaram com pouco mais de dez anos. Lembro esse dia como se fosse hoje, e tal como então, assalta-me ainda, passados todos estes anos, a mesma sensação de abandono, a mesma vontade de correr para os braços da minha mãe que insistira em acompanhar-me e que fazia um enorme esforço por sorrir encorajando-me enquanto engolia a custo as lágrimas. 
Filho tardio do senhor de Castelo Belo, Coronel na reserva, até àquela data, o meu mundo tinha sido, as ruas da aldeia e a liberdade de correr sem rumo, pelos  campos raianos. Espanha ficava ali à distância duma pedrada e para nós, pequenos e graúdos, habituados ao convívio diário com o “outro lado”, a fronteira era uma coisa que só existia num posto distante, vigiado por guardas dum lado e do outro. A nós não nos fazia diferença: nunca por lá passávamos. E para quê, se o podíamos fazer por entre as giestas e os carreiros, que não conheciam diferença alguma? Só muito mais tarde entendi, dolorosamente, o que significava “passar a salto” para o lado de lá.
A aldeia tinha apenas uma escola primária, e embora não fossem permitidas turmas mistas, ali não era necessário qualquer separação. Não me lembro de ver uma única rapariga na sala de aula. Até o professor era um homem. Respeitado, tanto quanto o padre e o meu pai, as pessoas cumprimentavam-no tirando os sebosos bonés e à sua passagem, as mulheres amortalhadas em negro, baixavam os olhos em sinal de reverência, enquanto saudavam com vozes quase sussurradas.
Não tinha amigos na aldeia. Tinha sim, companheiros de tropelias e de grandes cowboyadas, mas para eles, fui sempre “ o menino”, o único que andava calçado todos os dias da semana e em todas as ocasiões. Os meus primeiros amigos, aqueles que me ficaram para a vida, conquistei-os no Colégio, se bem que naquele primeiro dia ainda o não soubesse e tudo o que desejava era voltar à liberdade da minha aldeia. Mas as opções eram poucas: ou isso ou o Seminário. Ora o meu pai não tinha um filho único para entregar a Deus e ficar sem descendência. Pelo menos legitimo e que pudesse herdar sem mácula, o título de senhor de Castelo Belo. Ainda se colocou a hipótese de ir para Coimbra onde tínhamos familiares, mas o meu pai sabia bem o que tinha em casa. Disciplina, disciplina era o que eu precisava! A continuar à solta, corria o risco de me tornar um selvagem. Por mais que uma vez tinha chegado a casa sem sapatos, sujo e roto, em tudo parecido com qualquer miúdo da aldeia. E era isso que queria: ser igual a eles, ser um deles.
Já nessa altura me fazia impressão levar para a merenda um pão recheado de marmelada e os  olhares gulosos e tristes dos mais afortunados que comiam cebola com sal e dos outros que por nada terem se afastavam envergonhados. Está bem de ver que a merenda era sempre repartida e a cada dia maior. 
“ - Este rapaz tem a bicha solitária, minha senhora! Olhe que só hoje levou quatro pães de merenda! “ , queixava-se a Clotilde.  A minha mãe sorria e passava-me a mão pelo cabelo crespo, enquanto o meu pai, mais alheio,  dizia com orgulho: “ - Está a deitar corpo, é normal ”. Mas o que não era normal, era eu não passar dum trinca espinhas (nome que me ficou anos a fio no Colégio) por mais pães que “comesse”.
Foi no Colégio Militar que me fiz homem. E se aí aprendi a disciplina e o rigor que ainda hoje me levam a fazer a cama com um esmero que nunca a Patrícia conseguiu igualar, ou a manter impecável tudo à minha volta, foi também aí que despertei para a política, que tomei consciência do que significava ser duma outra classe social, das diferenças abissais que existiam no Portugal de então. Foi aí que contactei pela primeira vez com o Partido e com os movimentos contra o regime. Aliás, foi aí que entendi que havia um regime! Li livros que constavam dum códex muito próprio da ditadura e que chegavam clandestinamente a certos círculos de alunos e professores. Não tardei a fazer parte dos mais activos e politizados, e embora nada do que fizéssemos traísse as convicções que íamos adquirindo, aos poucos, construíamos a personalidade que adotaríamos, para quando fossemos para o mundo fora dos portões do Colégio.
Para mim estava claro: seria jornalista. O diabo era convencer o meu pai que me tinha o destino traçado e para o qual me dava toda a liberdade de escolha: ou advogado ou veterinário. Se bem que, tal como me fazia claramente entender, um advogado sempre era um Advogado!
Foram tempos felizes, muito felizes, esses. Do Colégio a parte Militar era a menos importante. Mais do que tudo, era o estrito código de conduta, de lealdade para com os outros e nós próprios que imperava. E esses foram os meus guias pela vida fora.
Bem, deixa-me lá fazer as honras a este cozido que cheira divinamente. Acho que vou sintonizar uma série qualquer, porque se me ponho a ver noticiários estrago a comida e azeda-se-me o vinho!
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!