terça-feira, 19 de maio de 2020

18ª Crónica: "O meu Isidoro é mesmo um amor de pessoa."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

18-05-2020


O meu Isidoro é mesmo um amor de pessoa.

Bendita a hora em que eu o encontrei naquele autocarro, a caminho da modista onde eu trabalhava… Será que ela ainda é viva? Claro que não, que disparate... Então ela era muito mais velha que eu… Às vezes perdemos um bocadinho a noção do tempo.

Mas dizia eu que o meu Isidoro é um anjo. As coisas que ele faz para me poupar arrelias… Como se eu não soubesse que ele manda dinheiro à Luísa todos os meses… De vez em quando, sai e diz: “ - Já volto ”… Nunca lhe pergunto nada, mas sei que é o tempo de ir ao multibanco na rua de cima.

Às vezes rio-me, porque o marido da minha patroa, no atelier, que andava sempre por ali a cirandar e a dar ordens, de vez em quando dizia: “ - Vou ao carro”. E a gente nunca mais o via. Por isso, quando alguma de nós saía, para ir ter com o namorado, dizíamos sempre umas para as outras: “ - Olha, aquela vai ao carro… ”

O Isidoro pode refilar, porque uma tem mau feitio e a outra gasta dinheiro a mais, mas no fundo, ele adora as filhas.

A primeira a sair de casa foi a Luísa, sempre a mais independente. Foi fazer Erasmus na cidade de Gante, na Bélgica, e claro que ele não se aguentou sem lá irmos visitá-la. E ainda bem, nós não viajamos muito, claro, mas foi uma das cidades mais bonitas que alguma vez vi na minha vida. Incluindo a Arruda…

Depois, já a Luísa andava lá por fora, a Teresa anunciou que se ia casar. Preparatórios para o casamento, convites, o fato, eu andava ali numa correria o dia inteiro, e nem notei como o Isidoro andava amarelo, magro, sem apetite. Até que uma noite, quase num murmúrio, disse-me:

- Devo ter um cancro. Mas não digas nada a ninguém. 

Fiquei sem palavras.

- Um cancro? Mas como é que tu sabes que tens um cancro?

- Fui ao médico.

-E não me disseste nada? E o que é que ele mandou fazer? 

Respirou fundo.

- Mandou-me ir amanhã ao hospital fazer uma endoscopia.

- Já amanhã? É porque deve ser muito grave.

Voltou a suspirar.

- Vou contigo.

- Claro que não vais, tens as coisas para arranjar, e depois…

- Não tem discussão, vou e vou mesmo.

No dia seguinte lá fomos. Nem conseguíamos dizer nada um ao outro. Ele entrou logo, sem sequer olhar para mim. Naquele tempo as endoscopias ainda eram feitas sem anestesia. Quando, algum tempo depois voltou à sala, vinha ainda mais amarelo, a transpirar, muito cansado. Sentou-se ao meu lado, à espera que o médico viesse falar connosco. Mal conseguia respirar. Passado algum tempo, pegou na minha mão:

- Olha… Devo ter de ser operado, claro… Por isso peço-te que não digas nada a ninguém, quero que se faça tudo como estava combinado, o casamento, a festa, a lua de mel, tudo. Que ninguém sonhe. Têm tempo de saber depois. Não quero perturbar nada.

Nem respondi. O médico levou bastante tempo a chegar à sala. Quando chegou, vinha a rir, como se lhe tivessem contado alguma anedota. Fiquei furiosa. Não era maneira de chegar junto de um doente. Levantei-me.

- Então, Sr. Doutor?

- Então? Sabe o que é que o seu marido tem? Uma gastrite. Receito-lhe uns comprimidos, uma dietazita e fica fino.

Riu mais um bocado e depois exclamou:

- Ai homem, homem… Sabe o que é que você tem? É aquilo a que nós chamamos a síndrome do ninho vazio… Os filhos casam, saem todos de casa, e vocês não sabem o que fazer à vida… Vá-se lá embora, e divirta-se no casamento…

Até chegarmos a casa eu fui sempre naquela terrível indecisão: ou lhe dou um estalo naquela cara, ou fico muito feliz porque não tem nada.

Ai os homens são tão complicados…

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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