sexta-feira, 15 de maio de 2020

17ª Crónica: "A minha vida divide-se entre a sala e a varanda."

  PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

14-05-2020



A minha vida divide-se entre o sofá da sala e esta varanda, por isso vi-a chegar e acenei-lhe:

– Espera aí que já desço.

Abri a porta do prédio e ficámos a olhar-nos por cima das máscaras.

– Não devias ter descido Matias! – censurou ela.

Mas vi que estava contente por não termos um vidro a separar-nos. Ah o valor das pequenas coisas!…

- Trouxe-te uma surpresa... linguados. Mas vais ter que ser tu a grelhá-los, que isto é coisa que não se pode aquecer. Vem também a calda para o arroz de tomate e é só…

Durante uns minutos deu-me as instruções de culinária. Eu praticamente não a ouvia. Pela primeira vez na minha vida entendi a importância do contacto com os outros, mesmo a dois metros de distância. Subi as escadas e de repente tive um ataque de riso tão forte que me fez perder o fôlego. Ou foi isso ou o raio do tabaco. Lembrei-me duma história de há muitos anos e que ainda hoje me faz rir. Mas para a contar, tenho que recuar a uma outra de que me lembrei ontem à noite, enquanto via televisão.

Como disse, evito ver programas de informação, porque, salvo honrosas exceções, passaram a verdadeiras feiras de vaidade, em que o protagonista é o ardina de serviço. Ardina sim, que chamar jornalista ou mesmo repórter a alguns deles, é um insulto a toda a classe.

Mas o programa da Clarinha não perco nunca! Ela sim sabe o que é uma entrevista e não a transforma num debate para se dar ares. Deixa o entrevistado expor as suas ideias, faz as perguntas certas… enfim, é uma jornalista como deve ser.

Também, pudera, bebeu-o no leite, está-lhe no sangue. Filha de dois grandes nomes do jornalismo dos anos 60, cresceu numa redação. Não, não é figura de estilo, é mesmo verdade! Naqueles tempos, a vida duma mulher, profissional e mãe, era um tormento e, raras eram as que conseguiam conciliar tudo. A Helena era uma delas. Brilhante repórter, vivia “em pecado”, com um nome respeitado no meio, quer como jornalista quer como escritor e de certa forma temido pelo poder. O Manuel tinha, como ninguém, essa faculdade inata de dizer o que lhe dava na gana, de tal maneira que parecia estar a fazer elogios, quando no fundo, punha muitas carecas à mostra.

Sem apoios familiares, nem dum lado nem do outro, quando a Clarinha nasceu, passado pouco tempo, a Helena voltou ao trabalho de alcofinha de folhos e lá dentro a catraia. Houve reuniões da Direção e blá blá blá, mas pela força da Jacinta, que era a outra mulher que a redação tinha e que estava ali, desde que o edifício fora construído, ou mesmo antes, e que quando lhe davam os azeites ia tudo raso, a menina foi autorizada a acompanhar a mãe no local de trabalho. Coisa impensável, hoje em dia, se bem que nalguns países por essa Europa sejam permitidos cães. Incongruências, mas pronto.

Dou de barato que aquele não era o melhor ambiente para uma criança. A redação, era um nevoeiro de cortar à faca, com toda a gente a fumar, o barulho mais que muito, o frenesim nem se fala. Mas a Clarinha dormia placidamente e não me lembro sequer de a ouvir chorar. Certamente que o fez mas… não me lembro, juro.

Sempre que a Helena tinha que ir para a rua, entregava “a encomendinha” a um de nós, que ficava responsável por mudar-lhe as fraldas e dar-lhe o biberon. E assim ia passando de secretária em secretária.

Era a nossa mascote, a menina nas mãos das bruxas, todos nós tios e padrinhos da catraia, competindo por um sorriso ou pelas primeiras palavras.

Mas o tempo não pára, e a miúda foi crescendo. Um dia, não sei quem teve a ideia de fazer um cercado, agora chamar-se-ia um parque, onde a miúda se pudesse sentar e brincar com os inúmeros brinquedos que cada um ia trazendo.

Isto, hoje em dia, era caso de violência e queixa à CPCJ. Na altura era apenas uma forma de amor.

O parque tinha uma portinha e, não raras vezes, um de nós tirava uma pausa para entrar e brincar com a cachopa.

Veio a revolução e com ela a alegria, o frenesim da liberdade de imprensa, as lutas sindicais, os novos tempos. Os jornais eram de facto o quarto poder e isso, sentia-mo-lo a cada momento. Muito mudou nesses primeiros meses. O que não mudou foi a presença da Clarinha que já fazia parte “do corpo redatorial”.

Um belo dia, estava a redação ao rubro, já não me lembro porquê, a Helena na rua com fotógrafo para “cobrir” uma manifestação qualquer e, de repente, alguém pergunta:

– A Clarinha?

Olhámos uns para os outros, olhámos para o parque com a portinha aberta e gelámos. A menina tinha desaparecido! Eram tempos incertos, falava-se de raptos, de revanchismos…

Tudo parou naquela redação. 

- “Clarinha, Clarinha…” - gritávamos. 

E era ver homens feitos já de lágrima no olho e de joelhos, espreitando por debaixo das secretárias, abrindo armários… mas da miúda, nem sinal. O próprio Diretor suava e dava ordens e contraordens para a procurarmos na rua, ver se alguém a tinha visto noutro andar.

– Mas se a miúda ainda nem gatinha, pá!

Foram horas de angústia, até que alguém foi dar com ela num cantinho junto ao armário do arquivo, por baixo duma série de jornais a dormir de dedo na boca. A catraia não gatinhava, porque já sabia andar, e nós, não nos tínhamos dado conta. 

Quando a Helena chegou, encontrou uma redação em festa e a Clarinha como uma princesa, andando de um para o outro lado ao chamamento de quem se tinha esquecido que havia um jornal para fazer. Foi mais uma noitada, mas valeu a pena.

Que tem isto a ver com os linguados? Nada, a não ser o facto de anos mais tarde a menina feita mulher e com um canudo de Comunicação Social nas mãos, ter aparecido na redação a pedir para fazer um estágio. Nessa altura já a mãe se dedicava apenas à literatura e eu era Diretor da “Xafarica”. 

Não vinha sozinha. Acompanhava-a um espirra canivetes engomadinho que apresentou como colega e que também se propunha a ser estagiário.

Mandei-os para casa com a promessa duma resposta no dia seguinte. Eram tempos diferentes e aceitar um (neste caso dois) estagiários, representava uma despesa, porque ali ninguém trabalhava de borla. Mas tratava-se da Clarinha. Da nossa Clarinha. Está bem de ver que a resposta seria positiva. E por arrasto lá viria o engomadinho. A primeira prova de fogo era simples:

– Vão para a rua e amanhã quero uma notícia na minha secretária até ao meio dia.

No dia seguinte, já a Clarinha tinha ocupado uma das secretárias e dedilhava na máquina a toda a pressão, apareceu o engomadinho. Sentou-se, fez estalar os dedos como se fosse dar um concerto de piano, olhou à sua volta e perguntou alto e a bom som:

– Onde é que estão as laudas?

Eu que também estava por ali na altura, olhei em volta e vi uma dúzia de olhos espantados.

- As quê??

– As laudas, o papel onde se escrevem as notícias para depois irem para a tipografia. – explicou o doutor do alto da sua sapiência.

A gargalhada deve ter-se ouvido no Rossio.

- Ó pá, o que tu queres são os “linguados”. Para seres jornalista, aprende primeiro a gíria!

É hoje director duma cadeia de televisão. 

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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