segunda-feira, 25 de maio de 2020

21ª Crónica: "Esta noite não preguei olho..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA 

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

25-05-2020


Esta noite não preguei olho de maneira nenhuma.

Andei para ali às voltas, vim fazer um chá de camomila que, embora sempre me soube a xixi, dizem que acalma, rezei o terço, encomendei-me ao meu Santo António, mas nada … Não houve maneira de sossegar!

Por instantes disse mesmo para comigo: “Maria do Socorro é desta que vais prestar contas a Deus”. Já aqui disse que medo, o que se chama medo de morrer, não tenho. Afinal não posso fazer nada para a evitar e se outros bem mais novos já foram, lá terei que ir na minha horinha.

Do que tenho receio é da dor ou de ficar para aqui feita uma alface a murchar aos poucos. Mas do que eu tenho mesmo pânico é de ter que prestar contas a Deus! Sei lá eu como vai ele reagir. Que eu nunca fiz mal a ninguém, pelo menos de propósito. Mas tenho comigo este peso que não me larga, embora o Sr. Padre Ezequiel me tenha dito que Deus era misericordioso e que não tendo havido intenção, um grande pecado fica logo mais pequeno e encolhe. 

O que na altura não encolheu foi a penitência: um sem fim de rosários e cinco contos para missas. Naquela altura, cinco contos eram uma fortuna, mas eu podia e a minha alma precisava. Vim mais leve em todos os sentidos. Mas à medida que o tempo passa… não sei… sinto um peso cada vez que me lembro.

Passam-se meses, anos, até que não recordo, mas ontem estava eu a folhear os álbuns e a comentar cá com os meus botões que, por terem tantos anos como eu, são moucos e já precisam que lhes fale em voz alta: “Olha quem ele é…quem havia de dizer, ali, aos brindes com o Marcelo (não é este, o outro) e tão revolucionário que está. E esta aqui, hei? Ou me engano muito ou o vestido que leva foi a minha senhora que lho emprestou. É vê-la.

Foi aí que dei de caras com ele. Ainda tive um segundo de dúvida, que isto a vista já não é o que era. Fui por isso buscar a lupa que o senhor Engenheiro usava para ver os selos. Lá estava, não havia engano possível, aquela sobrancelha única que cobria ambos os olhos não deixava dúvidas, mesmo a mim, que só o vira por breves segundos ali estendido na soleira da porta, mais teso que um bacalhau.

Folheei o resto do álbum, fui buscar outro e outro. Ao todo, aquela cara aparecia em pelo menos sete fotos. Umas mais próximas (que até me faziam saltar) outras mais ao longe. Sempre com um sorrisinho que arrepiava. Ou então era eu que já via o fantasma do desgraçado a olhar-me do fundo daqueles álbuns forrados a couro.

Afinal o individuo não era um bêbado qualquer, como disse a polícia no outro dia. Pois se ele estava naquelas festas, naquelas fotos, tinha que ser alguém pelo menos com alguma importância. Duma coisa eu tinha a certeza: não vivia cá na rua e duvido que fosse cá do bairro. Naquele tempo eu conhecia toda a gente e se não lhes sabia os nomes, as caras nunca me falhavam. 

Não, daqui não era. Fosse como fosse, o certo é que aqueles olhos debaixo da sobrancelha negra como um carvão, não me deixaram dormir a noite toda.

Abro a janela. O tempo parece de Primavera (eu não digo que os astros andam malucos!) e fico ali a olhar mais para o passado do que para quem passa, às vezes a janela leva-me a outros tempos …

Vejo passar a senhora agente da PSP que todos os dias sobe a rua a passo lento. Coitada, esta nem pôde ficar sossegada em casa e proteger-se do bicho. Ela e todos os colegas, benza-os Deus, que com as pessoas dos hospitais foram o exército português contra o vírus.

Diz-me adeus e eu também lhe aceno. Atravessa para este passeio e pergunta-me:

– Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Penso para comigo que, tirando o facto de ter agora um fantasma duma só sobrancelha a atazanar-me a memória, estou bem sim senhor.

– Só precisava que me tirassem dez anos de cima, respondo-lhe.

Ela ri:

– Ah, mas isso já não é com o meu departamento.

– Pois, mas nem imagina o que eu fazia se me voltasse a apanhar com 82 anos!!!

Gargalhou e disse-me adeus. A gente nova não tem ideia da diferença que faz uma década a mais.

Se eu tivesse oitenta anos…

Depois, lembrei-me que foi há dez anos que o desgraçado morreu aqui à porta e por isso, só por isso, dou graças por ter mais uma década em cima.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 


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