quarta-feira, 20 de maio de 2020

19ª Crónica: "Desde que os homens começaram a mexer nos astros..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

20-05-2020

Não me venham cá com histórias, desde que os homens começaram a mexer nos astros o tempo nunca mais foi o mesmo!

Ainda a semana passada esteve um calor que parecia Verão e hoje esta chuva de granizo, cada pedra do tamanho de berlindes.

Antes, havia quatro estações. Hoje, estações só as do metro, porque do tempo, uma pessoa não pode confiar no calendário. Tanto pode estar um calor de derreter em Outubro, como nevar na Serra da Estrela em pleno Junho. Mas quem mandou aos homens, andarem lá por cima a mexer no que estava quieto? Adiantou alguma coisa terem ido à Lua? Já há excursões como quem vai a Fátima? Encontraram petróleo? Ouro? Não, pois não? Então ficassem muito quietinhos e já não tinham dado cabo desta coisa toda, que está uma pessoa muito bem a arrumar a roupa de inverno, a tirar os cobertores da cama, e pimba, toma lá com menos dez graus que o dia anterior e toca a pôr tudo como estava!

Uma coisa é certa: hoje não está tempo de janela.

Ponho-me a andar pela casa como uma barata tonta. Não é que não tenha com que me entreter. Uma mulher em casa, se quiser, tem sempre trabalho. Acontece, que eu nunca senti esta casa, que os senhores me deixaram em testamento, vai para mais de 40 anos, como verdadeiramente minha.

Está claro que já não durmo no quarto de criada, que foi meu tantos anos, mas também não durmo no quarto dos senhores. O meu, é o quarto das visitas, que tem várias vantagens, entre elas, ter uma janela diretamente para a rua. No fundo, sinto-me uma visita que foi ficando. Também nunca usei a loiça boa ou a baixela de prata, e das joias da senhora, que ainda são algumas, uso apenas um fio com um “registo” em filigrana de Viana e a imagem de Nossa Senhora. Anéis só as duas alianças, a minha e a do meu falecido e os brincos são de viúva, como está bem de ver.

Até há um ano, quando pensava na morte (sim, que eu embora não pense todos os dias nisso, não tenho ilusões, um dia destes chega a minha hora!), ficava a pensar a quem iria deixar tudo isto que me caiu no colo, depois de muitos anos de dedicação, é certo, mas que foi completamente inesperado. Filhos, não tenho. Devo ter sobrinhos netos e primalhada que nunca mais acaba, lá na terra. Mas é gente que não conheço, que nunca me quis conhecer, e muito menos, saber se eu precisava dum copo de água. Ao Estado também não, era o que faltava. À igreja tão pouco. Sim, que eu cá sou católica, sim senhora, mas quando olho para os padres e para as freiras, não os vejo nem rotos nem magros. Deve haver, lá para África, mas por cá via-os muito bem, obrigada. Decidi pois, que deixaria tudo a alguma missão lá longe onde precisassem.

Liguei para o escritório do Dr. Estêvão, que sempre foi o advogado dos senhores e foi quem me deu a notícia da minha herança, e se pôs ao alto com uns sobrinhos do Sr. Engenheiro, que aí apareceram passados poucos dias do falecimento da minha senhora. Olha, aos enterros não foram eles, mas ao cheiro do dinheiro apareceram todos! Durante meses, mal batiam à porta, toda eu tremia. E o Dr. Estêvão sempre calmo: 

” - A D. Socorro não se apoquente que está tudo escritinho, como manda a Lei. Bem podem correr e saltar que de si ninguém lhe tira um tostão”. 

Pois, mas tiraram-me muitas horas de sono, isso tiraram. 

Do escritório, informaram que o Sr. Doutor falecera há muitos anos e que até o filho se reformara já, deixando nas mãos do neto o negócio da família.

Pronto, que fosse o neto. O que eu queria era fazer o meu testamento, expliquei. Depois de me fazerem esperar uns bons minutos, disseram que o sr. Doutor só poderia receber-me, ou vir cá a casa (e neste caso seria mais caro, foram logo avisando) depois das férias de Verão, lá para meio de Setembro. Como estávamos em Abril disse que sim senhora, que esperava que por essa altura ainda fosse viva, e ficou feita a marcação.

Mas Deus escreve direito por linhas tortas, sempre ouvi dizer.

Quando o João me informou que ia para Inglaterra porque aqui não se safava, não me lembrei logo. Foi depois, passados meses, telefonemas, o cuidado que demonstrava, que decidi. O que me fora dado, por intervenção dum anjo da guarda qualquer, iria para o meu anjo da guarda, que um dia surgira na forma de rapaz da TV Cabo.

E quando o doutorzinho aqui chegou, muito agastado por ter que subir um ror de escadas e a arfar, pois embora jovem tinha bem uns cem quilos naquelas perninhas, fez-se o testamento. Ainda teve a lata de dizer que deixar tudo a um desconhecido era perigoso, que se calhar era melhor deixarmos para mais tarde, que pensasse melhor…

Eu cá nunca tive papas na língua e sempre lhe fui dizendo que desde Abril até àquele momento, tinha pensado tudo o que havia para pensar e que tempo, era coisa que já me ia faltando. Assim, fez-se a coisa. Eram precisas duas testemunhas, anunciou. Nem de propósito bateram à porta. Era o marçano com as compras.

" - Ó rapaz, tu sabes assinar? – perguntei-lhe."

Ele olhou-me ofendido. Então não havia de saber? Essa agora! Para que eu soubesse, ele tinha a “escolaridade obrigatória” completa. Bem que devia ter a escola toda, devia, com um professor como o patrão… mas o importante é que sabia escrever.

" - Vou precisar do seu Cartão de Cidadão, disse-lhe o doutor com ar de quem quer ver se de alguma forma se livra desta e ganha tempo. Se calhar queria ver se me convencia a deixar-lhe tudo a ele. Isto há gente capaz de tudo, que eu bem vejo televisão.

" - Isso agora, tenho que voltar ao minimercado, que deixei a carteira no casaco."

Empurrei-o porta fora e mandei-o ir buscar o documento num saltinho e de passagem, que batesse à porta da vizinha Perpétua, que estava em casa de certeza, e lhe dissesse que subisse e trouxesse com ela o Cartão.

Passados quinze minutos, estávamos os cinco (sim, que o Isidoro nunca larga a mulher, e queria inteirar-se do que se passava) no escritório do Sr. Engenheiro, onde eu só entrava para limpar o pó, mas que sempre dava solenidade à coisa, a assinar as minhas últimas vontades.

Só espero morrer depois deste bicho se ir embora, para que o meu João venha ao funeral, e eu possa ver a cara de espanto quando se aperceber que lhe saiu a sorte grande.

Ai, mas que tempo triste este… Olha, com tudo isto, lembrei-me que desde essa altura, que não ponho os pés no escritório do Sr. Engenheiro e deve estar uma poeirada de meter dó. Não sei por onde entra tanto pó, Virgem santíssima. Pois se nem janela tem.

De passagem, vou folhear uns álbuns de fotografias. Não que conheça alguém que lá esteja para além dos patrões, mas sempre vejo gente.


Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. 

Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

Sem comentários:

Enviar um comentário