sábado, 9 de maio de 2020

15ª Crónica: "Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido."

   PÓ DE ARROZ E JANELINHA


Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

07-05-2020


Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido (bendita Rosa!), um copo de vinho e sentei-me na sala defronte da televisão, pronto para jantar. Sempre detestei comer sozinho e o aparato faz-me companhia, à falta de melhor. 

Ora cá está algo impensável antes desta prisão forçada e sobretudo, nos tempos em que esta casa estava cheia de vida. As refeições sempre foram feitas na sala de jantar onde não existia televisão, com mesa a preceito. Nisso eu e a Patrícia éramos muito parecidos. Coisas de educação que não se perdem, por muitos anos que passem. Mesmo aqui, de tabuleiro nos joelhos, há preceitos de que não abdico: naperon à laia de toalha, guardanapo de pano, talheres adequados e tudo, tudo. O que o berço dá, só a tumba tira. No meu caso, não apenas o berço que, senão foi de ouro pelo menos foi de prata fina, mas o Colégio Militar, onde meus pais me deixaram com pouco mais de dez anos. Lembro esse dia como se fosse hoje, e tal como então, assalta-me ainda, passados todos estes anos, a mesma sensação de abandono, a mesma vontade de correr para os braços da minha mãe que insistira em acompanhar-me e que fazia um enorme esforço por sorrir encorajando-me enquanto engolia a custo as lágrimas. 
Filho tardio do senhor de Castelo Belo, Coronel na reserva, até àquela data, o meu mundo tinha sido, as ruas da aldeia e a liberdade de correr sem rumo, pelos  campos raianos. Espanha ficava ali à distância duma pedrada e para nós, pequenos e graúdos, habituados ao convívio diário com o “outro lado”, a fronteira era uma coisa que só existia num posto distante, vigiado por guardas dum lado e do outro. A nós não nos fazia diferença: nunca por lá passávamos. E para quê, se o podíamos fazer por entre as giestas e os carreiros, que não conheciam diferença alguma? Só muito mais tarde entendi, dolorosamente, o que significava “passar a salto” para o lado de lá.
A aldeia tinha apenas uma escola primária, e embora não fossem permitidas turmas mistas, ali não era necessário qualquer separação. Não me lembro de ver uma única rapariga na sala de aula. Até o professor era um homem. Respeitado, tanto quanto o padre e o meu pai, as pessoas cumprimentavam-no tirando os sebosos bonés e à sua passagem, as mulheres amortalhadas em negro, baixavam os olhos em sinal de reverência, enquanto saudavam com vozes quase sussurradas.
Não tinha amigos na aldeia. Tinha sim, companheiros de tropelias e de grandes cowboyadas, mas para eles, fui sempre “ o menino”, o único que andava calçado todos os dias da semana e em todas as ocasiões. Os meus primeiros amigos, aqueles que me ficaram para a vida, conquistei-os no Colégio, se bem que naquele primeiro dia ainda o não soubesse e tudo o que desejava era voltar à liberdade da minha aldeia. Mas as opções eram poucas: ou isso ou o Seminário. Ora o meu pai não tinha um filho único para entregar a Deus e ficar sem descendência. Pelo menos legitimo e que pudesse herdar sem mácula, o título de senhor de Castelo Belo. Ainda se colocou a hipótese de ir para Coimbra onde tínhamos familiares, mas o meu pai sabia bem o que tinha em casa. Disciplina, disciplina era o que eu precisava! A continuar à solta, corria o risco de me tornar um selvagem. Por mais que uma vez tinha chegado a casa sem sapatos, sujo e roto, em tudo parecido com qualquer miúdo da aldeia. E era isso que queria: ser igual a eles, ser um deles.
Já nessa altura me fazia impressão levar para a merenda um pão recheado de marmelada e os  olhares gulosos e tristes dos mais afortunados que comiam cebola com sal e dos outros que por nada terem se afastavam envergonhados. Está bem de ver que a merenda era sempre repartida e a cada dia maior. 
“ - Este rapaz tem a bicha solitária, minha senhora! Olhe que só hoje levou quatro pães de merenda! “ , queixava-se a Clotilde.  A minha mãe sorria e passava-me a mão pelo cabelo crespo, enquanto o meu pai, mais alheio,  dizia com orgulho: “ - Está a deitar corpo, é normal ”. Mas o que não era normal, era eu não passar dum trinca espinhas (nome que me ficou anos a fio no Colégio) por mais pães que “comesse”.
Foi no Colégio Militar que me fiz homem. E se aí aprendi a disciplina e o rigor que ainda hoje me levam a fazer a cama com um esmero que nunca a Patrícia conseguiu igualar, ou a manter impecável tudo à minha volta, foi também aí que despertei para a política, que tomei consciência do que significava ser duma outra classe social, das diferenças abissais que existiam no Portugal de então. Foi aí que contactei pela primeira vez com o Partido e com os movimentos contra o regime. Aliás, foi aí que entendi que havia um regime! Li livros que constavam dum códex muito próprio da ditadura e que chegavam clandestinamente a certos círculos de alunos e professores. Não tardei a fazer parte dos mais activos e politizados, e embora nada do que fizéssemos traísse as convicções que íamos adquirindo, aos poucos, construíamos a personalidade que adotaríamos, para quando fossemos para o mundo fora dos portões do Colégio.
Para mim estava claro: seria jornalista. O diabo era convencer o meu pai que me tinha o destino traçado e para o qual me dava toda a liberdade de escolha: ou advogado ou veterinário. Se bem que, tal como me fazia claramente entender, um advogado sempre era um Advogado!
Foram tempos felizes, muito felizes, esses. Do Colégio a parte Militar era a menos importante. Mais do que tudo, era o estrito código de conduta, de lealdade para com os outros e nós próprios que imperava. E esses foram os meus guias pela vida fora.
Bem, deixa-me lá fazer as honras a este cozido que cheira divinamente. Acho que vou sintonizar uma série qualquer, porque se me ponho a ver noticiários estrago a comida e azeda-se-me o vinho!
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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