sábado, 23 de maio de 2020

20ª Crónica: "Se eu ainda estivesse no ativo..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

22-05-2020



Se eu ainda estivesse no ativo, as crónicas e artigos que eu não fazia agora, aqui da minha janela…

Nestas minhas andanças jornalísticas, ainda conheci uma filha do Eça de Queiroz. Imaginem como sou velho… 

A D.Maria, Marquesa de Ficalho, uma pessoa adorável… Sempre sorridente, deu-me uma bela entrevista. E ela contava que um dia, viviam então em Paris, estava ela de cama com gripe, quando o pai chega:

“ - Então, minha filha, como passou o seu dia?”

“ - Meu pai, aborreci-me”

Então ele, meio zangado diz-lhe:

“ - Aborreceu-se? Então, a menina tem a sua cama ao lado da janela que dá para o jardim, pode ver as árvores, as flores, as nuvens... e aborrece-se?”

Ela ria a contar isto e eu, nunca me esqueci. Porque eu também sou assim. Basta olhar pela janela e temos um mundo de histórias à nossa frente.

Mas, faz-me falta um lugar para as publicar. Uma vez jornalista, sempre jornalista, não há volta a dar.

Mas também, agora onde é que há jornais? Estão todos a fechar, ou passam a digital, ou publicam coisas que Deus me livre.

O meu último jornal (um dos que vão fechar, não tarda…) tinha tudo: tipógrafos que sabiam mais do que muitos de nós, café, cantina, médico. O médico era pago à peça. Quer dizer, por cada trabalhador do jornal que atendia. Por isso, de vez em quando, mandava chamar alguém para ir ao consultório, a ver se ganhava mais uns cobres.

Havia lá uma colega, a Virgínia, a mais velha de nós todos e que nos fazia a vida negra, para além de ser ignorante que até fazia aflição. Acho que tinha sido regente escolar (quem é que hoje se lembra disso...) antes de entrar para o jornal, ao que parece por via horizontal, mas pronto, isso era com ela. Quando eu entrei, ela já lá estava há muito, e não suportou que eu ficasse a chefiar a secção dela... Nem me quero lembrar…

Um dia, estava eu a ler um texto dela, sobre uma exposição que tinha ido ver à Gulbenkian. De repente, levantei-me da minha mesa, entrei pela sala do director adentro, pus-lhe o texto na mesa e disse:

“ - Corrija-o o Sr.Director, que se eu toco no texto dela, ela mata-me.”

O director olha para mim, admirado, testa franzida:

“ - Que é isto?”

“ - Leia, Sr.Director. É a notícia de uma exposição de ícones da Bulgária, que está na Gulbenkian.”

O nosso director era um homem sempre muito sério, e ainda hoje me lembro que não parava de rir.… Ria, ria, ria e ia dizendo:

“ - Ó homem, emende lá isso” e eu: “ - Nem pense, mande-a chamar e entendam-se.”

O título do texto era apenas: “Exposição Iconoclasta na Gulbenkian”

Saí, fui para a minha secretária na altura em que um contínuo apareceu e lhe disse:

“ - D. Virgínia, o Sr. Diretor quer falar consigo.”

Não sei o que se passou, sei que voltou à nossa sala, pegou no casaco e foi-se embora.

Detestava toda a gente, menos o médico, que achava “muito competente e muito bem parecido”. Uma tarde resolveu ir à consulta.

“ - Então quais são as suas queixas, D. Virgínia?”

“ - Olhe, Sr. Doutor, nem sei bem… É um cansaço, uma falta de energia… Às vezes acho que estou a ficar velha…”

“ - Não, D. Virgínia, a senhora não está a ficar velha, a senhora é velha!”

Nunca mais lá voltou, claro.

Raio da mulher. Era tão má colega, mas tão má colega, que no dia em que se foi embora nem teve jantar de despedida, como fazíamos sempre aos colegas que saíam. Eu ainda tentei, vá lá vamos fazer o jantar à velha, não custa nada, mas todos disseram que nem pensasse nisso. Foi a única que saiu assim, a seco. A única.

O meu jantar até teve direito a meia página de reportagem no jornal. Era tudo gente boa. Tenho saudades de alguns deles, mas a verdade é que já morreram quase todos.

Soube que a Virgínia morreu com 102 anos. Vaso ruim não quebra, é mesmo verdade!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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