terça-feira, 5 de maio de 2020

14ª Crónica: "Até há uns quatro ou cinco anos nunca falhei um 1º de Maio."

  PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

04-05-2020


Até há uns quatro ou cinco anos, nunca falhei um 1º de Maio. Mas agora, as artroses já não me deixam. Por isso, uma das coisas que mais me irritam, é dizerem-me que o que importa é a juventude de espírito. Como se a juventude de espírito me ajudasse a descer e a subir escadas… E então  as escadas da casa da minha filha que mais parecem a rota do Calvário. Não que eu vá agora lá muito, mas enfim… O Vasco é que tem essa mania. Coitado, pensa que isso me anima. Ele até é bom rapaz, e atura a Teresa há vinte e tal anos, o que não deve ser nada fácil que a minha filha tem cá um feitiozinho que Deus me livre. Palavra que não sei a quem é que ela sai, mas a mim e ao pai não é de certeza. Quando eu digo isto, o Isidoro remata logo: “ - Eu sempre soube que ela era filha do padeiro ”, e rimos como se tivéssemos 20 anos. Deve ser essa juventude de espírito de que fala o Vasco.
Mas então o 1º de Maio.  Ai, isto as recordações também são como as cerejas… Recordo logo o primeiro 1º de Maio, em 1974.  Os meus pais e a minha gente lá da Arruda, não se metiam em política. Eram do tipo “a minha política é o trabalho e dou-me muito bem com isso.” Quando vim para Lisboa e casei com o Isidoro é que ele me abriu os olhos. E esse primeiro de Maio foi um dia  único. Nunca  mais  vi  nada parecido. Um polícia que andava por ali só dizia para o colega: " - Isto, palavra de honra, isto, nem na Senhora de Fátima ”.
A Teresa tinha então cinco anos e a Luísa três. Ainda pensei em levar as duas connosco para a manifestação, nunca mais iriam esquecer uma coisa daquelas, mas depois tive medo, a confusão ia ser muita, e no meio daquela gente toda ia ser complicado. Não arrisquei. Então a minha sogra ficou com a Luísa e nós levámos a Teresa. Não que ela estivesse muito para aí virada. Amuou, bateu o pé, berrou: “- Não quero ir, não quero ir… ”, até que o pai lhe disse qualquer coisa ao ouvido que a fez acalmar. Devia tê-la subornado a chocolates e gelados Rajá, claro. (Só muito mais tarde soube que ele lhe tinha segredado: “ - Ou paras de chorar ou levas uma tareia que até danças”. O Isidoro conseguia ser muito persuasivo). Antes de sairmos, ela ainda deu uma corrida ao quarto e pronto, lá fomos.
E foi aquele mar de gente de que todos nos lembramos. A Teresa não estava a ligar muito àquilo, agarrada às minhas saias cantarolava: “ - O pretinho Barnabé, tiro liro liro, a saltar quebrou um pé, tiro liro lé... ” (hoje já ninguém canta esta música, claro..). Estava muito calor, ela arrastava-se, começou a cantar mais alto: “ - Salta agora num  pé só, tiro liro liro, salta agora num pé só, tiro liro ló...". 
Mas aquilo não a consolava. De repente, mete a mão na algibeira, tira a chucha e enfia-a na boca. E eu que  a tinha escondido tão bem… Por mais que eu fizesse, não havia meio de ela largar a chucha. A Luísa, nunca lhe pegou, mas esta…  Faço  de  conta  que  não  vejo  e lá vamos. Até  que  um  homem, no meio daquela gente toda, passa por nós, dá uma gargalhada e diz-lhe: “ - Ó camarada, ainda de chucha? És a vergonha do sindicato ”. E sem que pudéssemos fazer nada, tira-lhe a chucha da boca, atira-a para longe e afasta-se ainda a rir. Ela ficou tão apardalada que não disse nem ai nem ui. E nunca mais pegou numa chucha. 
Obrigada, camarada. 
E viva o 1º de Maio.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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