PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Eu nem queria
acreditar. Ao princípio nem lhe conheci a voz.
“ - Era para
lhe desejar um bom 25 de Abril, pai. ”
O que a quarentena faz às pessoas. Nunca me lembro de eles me telefonarem para isto, mas claro, agora sozinhos em casa, com vontade de se esganarem uns aos outros, sempre dá jeito ouvir a voz de outra pessoa.
Se calhar
fui um bocado seco, concordo, devia ter dito mais qualquer coisa para lá do
“obrigado” que me saiu da boca. Uns segundos
de silêncio, ele devia estar à espera que eu falasse mais, caramba, há quanto
tempo não nos ouvíamos, mas depois disse, a despachar:
“ - Está aqui o
Rafael ”
E passou ao
irmão.
“ - Olá, pai.
Está bem? Já tenho saudades suas…”
Ia-me dando
uma coisinha má. Apeteceu-me chamar-lhe todos os nomes, mas respirei fundo,
calma Matias, calma, não resolves nada se entrares pelo caminho dos insultos, calma, ainda vais morrer do
coração e não do corona vírus. Respirei
fundo outra vez.
“ - Ah sim? Calculo… É por isso que não páras de me
telefonar e de mandar mensagens…Palavra que às vezes até penso, mas aquelas
criaturas não têm mais nada que fazer senão estarem continuamente a
telefonar-me? "
“ - Ó pai… O
pai sabe como é, temos imenso trabalho, andamos numa correria danada, de um
lado para o outro, quando vou para lhe telefonar já é muito tarde. "
Ele ficou
calado e eu também. Não me apetecia nada continuar naquela conversa de chacha.
Até porque tinha de ligar à Palmira.
“ - Pronto, não
se fala mais nisso. Aí em casa estão todos bem? ”
“ - Sim, pai ”
“ - É o que se
quer. Então boa noite.”
Fiquei de
telemóvel na mão e lá fui ligar à Palmira. Nunca falho uma chamada no 25 de Abril.
A Palmira é
professora primária (agora diz-se doutra maneira, mas nunca me ajeitei), reformada há anos. Conhecemo-nos há muito tempo e por acaso, até ajudou muito a
Rosa quando ela quis ir para o ensino.
A Palmira
tem a mais extraordinária história que eu conheço do dia 25 de Abril, e nunca
me canso de a contar.
No princípio
da sua carreira, a Palmira foi colocada numa escola, para lá do sol posto. Uma
escola onde não havia nada, rigorosamente nada, nem uma caixa de sólidos para a
geometria, nem pesos, nem mapas, nem giz, nem apagador, nada de nada. A Palmira
queria ser uma óptima professora, mas não sabia como. Então, todos
os meses enviava uma carta ao ministério
dizendo isso mesmo, que assim não podia ensinar, e fazia o rol das
coisas de que necessitava. E, para lhes dar graxa, adiantava ainda que a escola
nem sequer tinha os retratos dos Senhores Presidentes do Conselho e da República, para pôr na
parede, como todas as escolas do país tinham. Nada de
resposta. Mas ela não se deixava vencer e no mês seguinte mandava mais outra. E no mês
seguinte mais outra. E mais
outra. E mais
outra. Silêncio
absoluto. Até que um
dia, vinha ela a chegar à escola e vê a empregada a correr para ela de braços
abertos.
“ - Ai, Sra.
Professora, nem vai acreditar… O Ministério mandou as coisas…”
“ - Não me diga, Sra. Leocádia…”
Correu para
a porta da entrada, onde estava um
grande caixote. Sorria de felicidade, agora ia ser uma professora a sério. Mas, a Sra.
Leocádia, excitadíssima, não parava de falar:
“ - Eles
estavam cheios de pressa, descarregaram o caixote e entraram logo na carrinha,
eu até perguntei se não era preciso assinar uma guia, mas eles que não, que
depois se via, mas que tinham de se ir embora... "
A Sra.
Leocádia riu: “ - Ó Sra.
Professora, eu até acho que devo estar maluca ou a ouvir mal... Imagine que até me
pareceu ouvi-los dizer que em Lisboa estava a haver uma revolução… ”
“ - Uma
revolução em Lisboa? Ai, Sra. Leocádia, precisa mesmo de ir ao médico dos ouvidos… "
Riram as
duas muito e foram abrir o caixote. Lá dentro
nem um sólido, nem um mapa, nem giz, nem apagador, nem nada. Lá dentro,
muito bem embrulhados, os retratos do Senhor Presidente do Conselho e do Sr.
Presidente da República...
Por isso, eu
lhe telefono sempre neste dia e rimos que nem uns doidos.
E quando lhe
perguntam, onde estava no 25 de Abril, a Palmira responde sempre:
“ - A olhar, feita
parva, para dois retratos que nunca foram pendurados. ”
E deixa-me
lá ir para a janela cantar a Grândola.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!
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