domingo, 19 de abril de 2020

PÓ DE ARROZ E JANELINHA: Folhetins de Alice Vieira e Manuela Niza

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

As Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena da Pandemia da Covid-19. 
04-04-2020 - 1ª Crónica: "A mim, a bem dizer, esta coisa de ficar em casa..."

A mim, a bem dizer, esta coisa de ficar em casa não me incomoda. Já há muito que não saio, que isto de viver num terceiro andar dum prédio sem elevador e com uma escada que mandou para  o jardim das tabuletas o sr. Juiz do segundo esquerdo (sim, que ninguém me tira da cabeça que o homem morreu da queda e não daquela infeção que dizem que apanhou no hospital…) não convida a grandes saídas.
Ainda quando tinha a Nini, a minha cadela (minha não, do falecido. Olha, foi a única herança que me deixou, que o resto ou a bebeu ou a espalhou por aí pelas esquinas. Cala-te boca, que já lá está e dos mortos não se fala mal, não vá aparecer-me aos pés da cama e ainda me levar com ele com um ataque do coração como aconteceu à Luziazinha, pobre miúda, quando a mãe morreu), lá a tinha que passear duas vezes por dia, fizesse frio ou calor. O que eu passei com a bicha, meu Deus!!! Ele foi veterinário, foi ração especial, operação…e para quê não me dirão? Quando chegou a horinha dela foi-se como todos. Se me faz falta? Para ser sincera quando morreu senti-me aliviada. Era menos uma preocupação. Depois veio o vazio do sofá semi ocupado e de “alguém” com quem conversar, mesmo que não me respondesse. Bem… isso também não é totalmente verdade, que à Nini não lhe faltava falar. Faltava, isso sim, que a entendessem, mas lá que falava, falava. Muitas arrelias tive eu com a bruxa do segundo andar que passava a vida a bater com a vassoura no teto mal ouvia as patinhas ou o mais pequeno latido depois da hora do telejornal. O raio da mulher deita-se com as galinhas! Olha, só eu nunca me queixei da barulheira que o filho dela fazia de cada vez que vinha completamente bêbado ou drogado, sei lá eu, a subir pelas escadas umas vezes a cantar outras a dizer palavrões…      Coitada, também teve a sua cruz. E, Deus me perdoe, mas deve ter sentido o mesmo alivio que eu senti quando o encontraram morto lá prós lados do Casal Ventoso. Pois, bem sei que já não se chama assim mas para mim continua a ser o Casal Ventoso. E o nome não mudou o que lá se passa. Mas enfim. A pobre da Almerinda teve a sua cruz. Não deixa de ser uma grande bruxa e quadrilheira, mas lá que as passou, passou. Só não sei se sentiu depois a falta do mariola como eu da minha Nini. Afinal o rapaz não lhe parava em casa… 
Mas onde é que eu ia? 
Ah sim. Pois é como digo, a mim não me aflige esta coisa de estar em casa o dia inteiro. Tenho a televisão, faço crochet, embora a vista já só me deixe trabalhar com linha 12, mas enfim. E tenho a minha janela. Essa sim, sempre foi a minha companhia. Houve um tempo em que, sobretudo no Verão à noite, as janelas se enchiam de gente e a rua (que sempre teve pouco movimento, embora agora mais pareça um deserto e onde não falta sitio para arrumar o carro) era campo de brincadeiras dos garotos. Depois os tempos mudaram e a rua tornou-se silenciosa de vozes e barulhenta de motores. Mas pronto, sempre se via quem entrava e quem saía, quem chegava, quem ficava grávida, quem passava de menino a homem. Que eu conheço-os a todos! Bem, todos, todos não, que isto uns já se foram e outros vieram chegando  e estes nem os bons dias dão. Credo! parecem bichos, sempre agarrados aos telemóveis ou a falarem sozinhos. Só se distinguem dos maluquinhos pelos fios que lhes saem dos ouvidos. 
Mas como ia a dizer, a mim o vírus não me apanha ou eu não me chame Maria do Socorro! 92 anos feitos a 29 de Fevereiro. Olha… agora reparo, capicua! Mais uma razão e um sinal. A mim o raio do bicho não me vai agarrar! Pois se eu só saio para ir ao médico e já… vamos cá ver Socorro, vamos cá ver… há uns bons anos que não ponho lá os pés. Remédios caseiros, muito alho, e distância, distância de batas brancas que isto se a gente procura encontra qualquer coisa e depois magica, magica e pumba, vai-se desta para melhor. 
De vez em quando vinha aí uma senhora da Junta de Freguesia. Muito simpática por sinal. Bem me dizia que eu devia ir para um lar, que era perigoso ficar sozinha, que me mandava cá um médico se não queria ir ao meu médico de família… Sempre lhe fui dizendo que o meu médico de família era o Dr. Julião que já morreu há mais de vinte anos. Foi ele que cuidou de mim desde que cheguei à cidade, que tratou da minha senhora até morrer e do meu Faustino. O outro, o que alguém me impôs, vi-o meia dúzia de vezes sempre a correr com um computador à frente do nariz. Muitas perguntas, muitos exames e toma lá um papel cheio de medicamentos e vem daqui a um mês. Tá bem tá! Isto fui explicando à menina Rosa Maria, que vim a saber ser Assistente Social e morar aqui para estes lados “- Nunca a vi!” “- Pois é normal. Saio cedo e chego tarde”, enquanto lhe servia um chazinho com uma gotinha de licor que faz bem à alma. Licor feito por mim, note-se! Com casquinhas de laranja e aguardente que mando vir da minha terra. Pelo menos assim mo garante o Alfredo, que ainda mantém a mercearia ao cimo da rua, mas cá pra mim aldraba-me. Ele, a bem dizer, sempre foi um grandessíssimo aldrabão. Sai ao pai, de quem herdou a carvoaria e a transformou na mercearia e depois no minimercado POUPAQUI. Devia ter vergonha. Com os preços que tem… Mas manda-me as compras a casa e isso já é muito bom. Só por isso lhe perdoou a mentira da aguardente. Mas ele que não pense que me engana. Posso ser velha mas ainda não estou tonta. 
Acredito que para muita gente ficar dentro de quatro paredes seja um suplício. Assim uma espécie de prisão. Olha, agora reparo… querem lá ver que a Providência Divina mandou desta maneira para a cadeia aquela gente que se livrava da verdadeira com muita lábia e ainda mais dinheiro? Hehehe. E depois digam-me cá que não há Deus. Que eu tenho muita pena do que se está a passar, não cuide! Tenho pena, sim senhor. Mas isto, minha filha, está tudo escritinho. Quando os homens perdem o juízo, pumba! Vem de lá de cima  um raio e parte-nos a todos. 
Notícias já nem vejo. Para quê? Pior que em tempo de eleições, Deus me livre. Sempre o Corona, o Corona… 
Bendita a hora que abri a porta ao miúdo da TV por cabo. Que eu não queria cá dessas modernices. E para quê? Entre os quatro canais e a minha janela chegava bem para me entreter. Mas tive pena do rapaz, que quer? Convidei-o a entrar “- A senhora não tem medo de estar aqui sozinha?” “- Eu não, filho” “- Mas pode entrar alguém e fazer-lhe mal!”  “- Tu vieste para me vender essa geringonça ou para me fazeres mal? Olha, filho, dinheiro não tenho que justifique e o ouro está ali no quarto, se quiseres mostro-te” e servi-lhe um chá com uma fatia dum bolo de frutas, que faço muito de vez enquanto. 
Falámos durante tanto tempo que saiu já jantado e com os papéis assinados. Voltou ao outro dia e lá colocou a televisão com tantos canais que nem sei quantos são. “ - Devia comprar uma televisão nova” “ - Esta ainda está muito boa. É a cores! Ou não se pode pôr essa coisa aqui?” “ - Poder pode mas a resolução não é tão boa” Eu de resoluções só conheço as que  tomei na vida. E só tempos depois soube se eram boas ou não. A televisão ficou. E parece que também tenho Internet.
O João passou a vir todas as quartas-feiras tomar um chá e comer um bolinho. Era mais certo que o relógio de parede. Quando o via parar a carrinha, sabia que eram as cinco e meia em ponto. O miúdo precisava de falar, coitado. Foi assim que soube que estudava à noite e que a sua paixão era ser um dia enfermeiro. “ - Enfermeiro, João? Ao menos médico, que sempre é profissão mais importante!” Mas ele que não, que ser enfermeiro era estar mais perto dos doentes, conhecê-los… Recordei o médico do Centro de Saúde e dei-lhe razão. Pelo menos não tinha um computador à frente. 
Olhe, dessas tardes sinto a falta, sim. No dia em que se formou dei-lhe o relógio que a Senhora oferecera ao meu homem quando nos casámos e ele entregou-me uma caixa. 
“ - Que é isto? " “ - É um telemóvel. Para falar comigo quando eu estiver em Inglaterra” 
Caiu-me o coração aos pés ao ouvi-lo falar da decisão da partida, do contrato que já tinha, de como tudo ia mudar para melhor na sua vida. Animou-me o entusiasmo, mas confesso que se me esfriou o coração. Mas com a minha idade o que mais tenho tido são adeus. 
Ensinou-me a mexer no aparato, recomendou-me que não me esquecesse do carregar, deu-me um beijo (o primeiro após todos aqueles anos) e disse “Adeus avó”. Nunca ninguém me chamara avó, pelo que não soube o que responder. Disse-lhe adeus e fechei a porta. Era apenas mais uma partida. 
LINDO! Não acham? Obrigada, Dras. Alice Vieira e Manuela Niza. Bem hajam!                    Desculpem, não consegui encontrar a Vossa ilustração e tomei a liberdade de colocar uma outra que encontrei na net.

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