domingo, 19 de abril de 2020

5ª Crónica: "Toca a campainha e volto à varanda para ver quem é"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza, durante a quarentena da Pandemia da Covid-19.

12-04-2020 

 

Toca a campainha e volto á varanda para ver quem é. 
O prédio é velho e não tem intercomunicador. 
Pelo menos tem fechadura elétrica que funciona mês sim mês não. Felizmente que este é mês sim! 
Quando para aqui vim ainda só tinha uma “ mãozinha” como batente. 
Uma pancada era o primeiro direito, uma pancada e duas repenicadas era para o primeiro esquerdo e por aí fora.

“ - É o jantar Matias.”
Sorri-lhe “ – Já desço!”. Abri-lhe o trinco da porta da rua. Sabia que ia encontrar um saco de verga no patamar da entrada e ela já do outro lado da porta de vidro. Como noutros tempos, tempos mais negros.
“ - Para que te foste incomodar rapariga? Ainda tenho restos de anteontem e até de Domingo congelados”. As vozes mais altas para ultrapassarem a espessura do vidro, ecoavam na rua deserta.
“ - Isso, põe-te a dieta põe! É que já quase que nem pele tens sobre os ossos…” 
Pus a mão no vidro, ela colocou a dela do outro lado. Como noutros tempos, tempos mais negros. Tempos que mudaram as nossas vidas: a minha, já homem feito e a dela menina de colo, órfã de pai que não resistiu à violência “deles”.
Ficámos um bocadinho assim.
 “ - Até amanhã Matias. Cuida-te”;
 “ – Até amanhã Rosa. Tu também, miúda”.
Subi as escadas a matutar. Três filhos, três e só aquela miúda se importava comigo. Ah se ela soubesse… Não Matias tu não podes ter a certeza. Eram tempos de dor e a dor confunde as cabeças. 
Voltei à varanda para mais um cigarro e instintivamente fiz o que sempre faço: certifico-me que estou debaixo do alpendre. Rio sozinho. Será que estes putos sabem o que foi a Lei da Telha? Alguém lhes terá contado? 
Agora… pois se a maioria pouco ou nada sabe do que foi a revolução, do que aconteceu antes e depois, quanto mais das manigâncias que um gajo fazia para dar a volta ao sistema.
Ainda me lembro do dia em que todo  o jornal  saiu apenas com receitas de culinária!!!
Pois se os gajos da censura tinham cortado tudo, se não se podia contar nada nem reportar coisa nenhuma, olha pelo menos o “ Bacalhau com grão” não devia colocar problema. 
O problema foi conseguir receitas para publicar. Naquele tempo os jornais eram, na sua grande maioria, ainda terreno masculino, e macho que era macho, nem sabia onde ficava a cozinha, quanto mais cozinhar. 
Assim que toca a telefonar à mãe, à tia, às avós, a pedir receitas. E elas muito espantadas: “ - Mas porque queres tu saber como se fazem farófias? ’” ; “ - Ai meu rico filho, deixa estar que no domingo faço-te um cabritinho assado como tu gostas…” “ - Para o leite creme ficar bom tens que estar sempre a mexê-lo. Mas cuidado, sempre para o mesmo lado, se não deslaça!”.
E a malta a tomar notas que nem doidos que era preciso fechar o jornal e nem notícias nem receitas. Alguém se lembrou de ir buscar o Pantagruel e copiar. Aí foi a indignação geral: uma coisa era um grito de rebelião contra o lápis azul (azul sim, que a censura nem no que cortava ou alterava queria ver vermelho) outra era plágio. Que o jornal saísse só com capa e contra capa se fosse preciso, mas que ninguém dissesse que tínhamos copiado fosse o que fosse. Ingenuidade da juventude. Como se as receitas das nossas mães, santas e do lar, não fossem elas também cópia de livros ou revistas femininas. Enfim…
Mas voltando  a  esta minha mania de olhar o pequeno alpendre da varanda.
Durante o Estado Novo saiu uma lei ainda mais estapafúrdia do que o costume. Era proibido o uso de isqueiro na via pública. A medida era óbvia, tratava-se de proteger a Fosforeira Nacional e o latifúndio de mais um dos que comiam à mesa do poder. Para se poder ter e usar um isqueiro era preciso uma licença. Assim como se fosse para ter um revólver. A lei dizia expressamente que só se podia  usar “ debaixo de telha” sob pena de avultada multa. 
Ora a malta aprendera à custa de pancada e de muitos anos, a esgueirar-se pelos pingos da ditadura. E mesmo naqueles tempos cinzentos como chumbo, tínhamos humor. Está bem de ver que começámos a andar com uma telha no bolso. Não era prático mas dava um gozo bestial acender um cigarro na chama dum isqueiro, muitas vezes com a ajuda dum amigo que segurava a telha sobre a nossa cabeça, outras fazendo verdadeiros exercícios de contorcionismo, nas barbas da bófia. 
É por isso que olho para este alpendre de cada vez que acendo um cigarro. Como me sabe bem.
Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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