domingo, 26 de abril de 2020

11ª Crónica: "Tivessem-me perguntado que eu contava-lhes."

 PÓ DE ARROZ E JANELINHA
Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
 durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

25-04-2020



Tivessem-me perguntado que eu contava-lhes.
Mas como têm a mania de que passo a vida na calhandrice (como se não tivesse mais que fazer, senhores, que tenho sido sempre uma moira de trabalho!), nem me atrevi a abrir a janela. Se alguma coisa sei é porque me contam, que eu cá não pergunto nem me meto na vida de ninguém. Deve ser este meu ar. O meu Isidoro até costuma dizer que se eu fosse homem dava um bom padre: todos se confessam comigo. É sinal que sou pessoa de fiar e que a minha boca é um túmulo, não é verdade?
Mas fiquei a ouvi-las, com a cortina aberta para ver de quem se tratava.
Era a Rosa sim senhora, ora que admiração. A Rosa Maria para sermos exatos, que isto de nome de batismo não se corta pela metade. Já eu sou Perpétua sem mais e o meu Isidoro também não tem outro nome.
Mas quanto à gaiata, pois que aqui nasceu e aqui se fez menina.
Filha única, lembro-me dela sempre um bocadinho mal encarada. Os miúdos não gostavam muito de a convidar para as suas brincadeiras. Geralmente acabavam com ela aos pontapés ou aos murros, numa grande chinfrineira de gritos e ameaças entre crianças e graúdos.
As minhas nunca a suportaram. Também, ela só tinha brincadeiras de Maria Rapaz e não se interessava por casinhas e bonecas. Policias e ladrões, isso sim, com ela sempre do lado dos ladrões, fugindo e batendo na “polícia” como qualquer rufia.
A “coisa” deve ter-lhe ficado do pai, um belo rapagão que trabalhava como tipógrafo lá pró Bairro Alto. Faziam uma família muito bonita, essa é a verdade. A mãe lavava as escadas, recolhia o correio e atendia na portaria do prédio ali ao cimo da rua. Eram tempos difíceis e uma porteira tinha apenas a casa minúscula como paga. Por isso fazia uns biscates, uns arranjos de roupa, que modista nunca foi.
Modista é coisa bem diferente de costureira. Modista fui eu toda a vida, e de gente fina! 
Onde é que eu ia? Ah sim, no belo rapagão, que isto uma pessoa pode ser virtuosa, fiel e temente a Deus, mas não é cega e os olhos também comem e por aí não vem pecado. Nem em pensamento!
O que se falou na altura foi que ele, Francisco Mateus, de sua graça, seria do contra, e uma bela noite, quando vinha do trabalho, encontrou a PIDE à porta.
Que eles estavam todos identificados! Ora quem, a PIDE… sabiam mais a dormir que agora estes polícias todos acordados. Estes e os que se veem na televisão. E sem grandes aparelhómetros!
A verdade, verdadinha, é que por toda a parte havia “bufos”, gente que era paga para informar quem era do partido. Qual partido? Ó senhores, pois se na altura só havia a União Nacional, o partido era o Comunista, está bem de ver.
Eu cá não sei se o homem era ou não comunista, se bem que a gente dos jornais tinha fama de ser toda contra o regime e os tipógrafos não fugiam à regra. Certo, certo, é que o enjaularam.
A Conceição passou um mau bocado, coitada. Até ameaçaram tirar-lhe o lugar de porteira. Ninguém queria ter nada a ver com quem era inimigo da Nação. Mas depois, a vizinhança lá do prédio teve pena, uma mulher sozinha com uma filha ainda pequena, ainda para mais em vésperas do Natal…
Entretanto, dá-se o 25 de Abril. Muita alegria, muita gente aos vivas à liberdade, muitos cravos, enfim o que se sabe. 
Logo no dia a seguir são libertados os presos políticos no meio duma manifestação de gente que esperava à porta da prisão de Caxias. Sai esse, sai aquele, mais a outra (que isto também havia mulheres ao barulho, ah pois! A ditadura nesse aspeto era muito democrática: quem era contra ia dentro, fosse homem, mulher, preto, branco, azul às riscas). Do Francisco nada.
Veio a saber-se depois que tinha morrido dois dias antes, num interrogatório de “rotina”.
Há gente que nasce com uma estrela mazinha. Vejam lá vocês o azar do pobre coitado. Mais um par de horas e teria voltado para casa pelo seu próprio pé.
A Conceição e a filha ainda moraram aqui mais uns anos até que, entretanto, a mãe voltou a casar e foram viver prá outra banda.
Durante muito tempo não se ouviu nem se viu uma ou outra por estes lados. Soube por alguém que a miúda tinha entrado na faculdade e estava a dar aulas não sei aonde.
Há coisa duns bons anos, quem havia de comprar a casita, que entretanto deixou de ser da porteira (ele há lá agora porteiras!) e se transformou num T1? Pois claro, a Rosa Maria!
Não sei como se arranjou, que isto aqui na rua qualquer cochicho é um balúrdio que Deus me livre, e o ordenado de professor não é nada por aí além. Bem o sei eu que tenho duas e vejo o que passam…
O certo é que comprou a casa e aqui se instalou já vai para, se a memória não me engana, mais de dez anos. Ai vai, vai. 
Olha, foi mais ou menos na mesma altura em que apareceu o homem morto mesmo aqui na soleira do prédio.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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