quinta-feira, 11 de junho de 2020

26ª Crónica: "Ó Rosa, sardinhas é em Alfama, nos arraiais..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

11-06-2020


Ouço a voz da Rosa a chamar-me da rua:


- No restaurante da esquina têm sardinhas. Eu hoje não tenho aulas, queres ir?

- Sardinhas? Aqui? Ó Rosa, sardinhas é em Alfama, nos arraiais…Com manjericos…Cravos de papel…

- Melhor que nada…

- E sabes se há lugares? Agora só entra meia dúzia de pessoas…

- Já liguei. E por acaso até já marquei… Mas se não quiseres...

- Pronto, já desço.

Ponho a máscara, olho para o espelho, até parece que vou assaltar um banco, e enfio o telemóvel no bolso.

Não me posso esquecer de telefonar ao Jaime. É verdade que eles não me ligam nenhuma, mas pronto, pai é pai, e dia de anos é dia de anos.

Lá entrámos no restaurante, mais empregados que clientes, que horror, como é que esta gente se vai safar… E mesmo assim, para porem estas pessoas, têm de colocar acrílico à nossa volta, parece que estamos presos… Meu Deus, como é que de repente aconteceu isto no mundo inteiro?

A Rosa lá pediu as sardinhas enquanto eu ligava para o Jaime.

- Parabéns, filho!

- Lembrou-se, pai? Que bom!

- Então não me havia de lembrar...

Já ia começar a disparatar mas contive-me, calma Matias, calma.

- Se há coisa de que nunca me esqueço, é do dia do teu nascimento… A tua mãe nunca te contou? Foi cá uma aventura…

Entretanto as sardinhas já estavam na mesa. Pode não haver arraial, mas pelo menos gosto de as comer bem quentes.

- Olha, a tua mãe que te conte… Beijinhos a todos.

Desliguei ainda a rir. A Rosa também olhava para mim, espantada.

E de repente vi-me, há 35 anos, a tentar convencer a Patrícia a ir comigo a Alfama. Eu tinha a reportagem a fazer para o jornal, tinha de dar voltas e voltas à cabeça para não escrever todos os anos a mesma coisa, ela sempre podia dar uma ajudinha. 
Mas a Patrícia, não era muito de santos populares, e então grávida, era melhor ficar em casa. É claro que se não fosse a reportagem eu também tinha ficado, mas assim, tinha mesmo de ir.

- Não demoro muito, prometo.

- Traz-me um manjerico - pediu ela.

Lá fui, entrevistei meia dúzia de pessoas, comprei um manjerico e vim para casa. Um papel na mesa da entrada dizia: “vou à urgência, não demoro”. Corri escada abaixo, de manjerico na mão, que teria ela ido fazer à urgência?, parecia que voava, e em minutos entrava no hospital, sem fôlego.

- A minha mulher chama-se Patrícia, veio para as urgências, podem dar-me notícias?

A empregada consultou fichas e mais fichas.

- Ah, já encontrei. A sua mulher está na sala de partos

- Na sala de partos??? A fazer o quê?

- Se calhar a saltar à fogueira…

- Ó senhora, não brinque comigo que isto não tem graça nenhuma...

- Então, o que quer o senhor que ela esteja a fazer na sala de partos? A ter a criança…

- Qual criança?

- Espero que seja a sua…

- Não me enerve… A criança não era para nascer agora, ainda faltava muito tempo…

- Adiantou-se, que quer que lhe faça...

Fumei cigarros atrás de cigarros, as horas passavam e ninguém me dizia nada. Fui de novo ao guichet, a empregada já era outra.

- Já há notícias da minha mulher?

- A que horas entrou ela?

Aí engasguei-me, sabia lá a que horas ela tinha chegado...

- Não sei, só quando cheguei a casa, é que tinha lá um recado dela, a dizer que tinha vindo para as urgências…

- Estou a ver… - resmungou a empregada - foi para a farra e a mulher que ficasse em casa. Os homens não prestam mesmo… É por essas e por outras que nunca me hei-de casar…

Estava exausto, já não sabia o que fazer, eram cigarros atrás de cigarros.

Por aquela porta já tinham entrado cinco cabeças partidas, um pescoço com uma naifada, três costelas deslocadas, duas cólicas de rins, e uma voz que berrava: “agarrem-me, agarrem-me senão eu mato-a”.

Transpirava, a minha cabeça andava à roda. Deixei-me cair no sofá. Depois só sei o que me contaram. O médico chegou ao pé de mim e disse:

- Parabéns, tem ali um rapaz e peras… Pesa…

E acho que não disse mais nada... descalço, de colarinho desapertado, de manjerico caído aos meus pés, eu dormia o sono dos justos.

Enquanto no guichet a empregada repetia:

- É por estas e por outras que nunca me hei-de casar.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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