sábado, 20 de junho de 2020

28ª Crónica: "Estive à janela a apanhar este fresquinho da tarde..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

17-06-2020


Estive à janela, a apanhar este fresquinho da tarde e a ver já algum movimento na rua.

Ainda me estou a rir com a fúria da Perpétua… 
Aquilo foi de estar tanto tempo metida em casa… 
Daqui a bocado chega aí e desatamos os dois a rir da palermice. 
Porque ela não é nada assim. Por isso é que eu me meti com ela. Tem fama de saber a vida de toda a gente, mas não se mete com ninguém.

O que ela gostava — e muitas vezes já o disse — era de convidar, cá para casa, os nossos vizinhos, e cada um contar a sua vida. 
Não por bisbilhotice, mas para entendermos o que as pessoas já passaram. De bom e de mau. 

Porque ela assegura — e tem um bocado de razão — que ninguém deste prédio deve ter tido uma vida tão cheia como a dela. 
Os bailes da chita, as Noivas de Santo António, a viagem de núpcias, a viagem ao estrangeiro para ver a Luísa… Nada mau…

Aproveito ela não estar cá e vou fumar um cigarrito. Eu sei, eu sei que me faz mal — ao pé dos meus netos, nunca fumo — mas às vezes apetece-me, e meia dúzia de cigarros, também não me hão de fazer assim tanto mal.

Desde aquela história da endoscopia — ainda hoje coro de vergonha — a Perpétua insiste muito para eu ir ao médico de vez em quando, visita de rotina, mas pronto, com a minha idade é preciso ter cuidado com a saúde.

Aqui há tempos, ainda o bicho não tinha atacado e os médicos estavam livres, lá fui ao centro de saúde. O meu médico não estava e fui atendido por outro que eu nunca tinha visto. Fez-me uma data de perguntas e desculpou-se, mas o Dr. Fonseca tinha metido férias e ele é que tinha ficado com os doentes dele. Perguntas e mais perguntas, medida da tensão, um olhar para o écran do computador a ver as minhas fichas todas, e o meu processo todo, e agora suba ali para a marquesa para eu o apalpar, e por aí fora. Depois, vieram as perguntas sacramentais:

- Fuma?

- Muito pouco Sr. Dr., há dias em que fumo uns dois, três cigarritos, mas há dias em que não fumo nada… É mais por gosto do que por vício, Sr. Dr..

Resmungou qualquer coisa que não entendi e teclou lá umas coisas.

- Faz dieta?

Aí engasguei-me. Com os petiscos da Perpétua, quem é que podia fazer dieta…

- Quer dizer... Não como feijoada todos os dias, claro, mas assim uma dieta, mesmo uma dieta a sério, cozidos e grelhados, isso não faço não, Sr. Dr..

Ele olhou mais uma vez para o meu processo…

- Já calculava…

O tom não agoirava nada de bom. Pegou numa receita e começou a escrever, sempre sem dizer nada. Depois parou, afastou-se um bocadinho da secretária e lá começou a ditar a sentença.

- Então é assim… O senhor não está mal, mas vai-me prometer que não volta a pegar num cigarro, e leva aqui as indicações para uma dieta, que eu quero que cumpra a rigor.

Fez uma pausa.

- Porque é assim, hoje o senhor não está mal, mas quando chegar aos 80 é que vai ver… E depois vai-se lastimar por não ter feito dieta e essas coisas. Porque não deve pensar só nestes dias, mas no que vai ser a sua vida daqui a anos. Então não pode fazer nada…

Outra pausa.

- Estamos entendidos?

- Estamos, Sr. Dr.

Vesti o casaco e tive pena que a Perpétua não tivesse ido comigo. Para me consolar. Ouvir uma coisa destas, não é fácil.

Entrei em casa e ela estava enfiada em novelos de linha branca a fazer uma colcha para a Teresa.

- Então?

- Então, tens de passar a fazer peixe grelhado e cozido, para mim, todos os dias

- Porquê?

- Porque o Sr. Dr. disse que se eu quero chegar aos 80, tenho de ter muito cuidado.

- Chegar aos 80? Mas tu já tens 85…

- Ele não me perguntou…

Desatámos a rir, e pelo menos com a certeza que ainda posso comer cozido e arroz de pato, por mais alguns anos…

E neste momento ouço a chave na porta. A Perpétua entra, com um sorriso de orelha a orelha.

- Desculpa lá, não sei o que me deu há bocado. Foi de estar aqui metida tanto tempo… E sabes o que me aconteceu? Eu ia pelos passeios e só dizia para mim “quero ir para casa, eu quero ir para casa”… Já não estou habituada a sair, como dantes. Isto é que é uma vida… Bom, mas vamos lá ao trabalho. Deixei bacalhau de molho, vamos lá fazer um bacalhau à Zé do Pipo…

Vou até à janela. De vez em quando, a Perpétua tem ideias de génio!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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