sexta-feira, 5 de junho de 2020

24ª Crónica: "Nunca fui mulher de andar agarrada ao telemóvel."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19 

03-06-2020


Nunca fui mulher de andar agarrada ao telemóvel.

De resto, quando a Teresa se põe a dizer que o telemóvel faz tudo, tira fotografias, mostra o boletim meteorológico, as horas em todos os países, pode ser a nossa agenda, faz vídeo chamadas, grava vídeos, sei lá que mais, eu corto-lhe logo o discurso:

- “Minha querida, o telemóvel, para mim, é para fazer chamadas, receber chamadas, mandar mensagens e receber mensagens. E já é muito.

Mesmo quando ainda nem se sonhava com telemóveis, evitava o telefone sempre que podia.

Nunca namorei ao telefone, nunca perdi horas à conversa com as amigas. De resto, na Arruda toda a gente morava ao pé de toda a gente, era só ir à janela ou ao quintal e chamá-las.

Mas concordo que o telemóvel foi uma grande invenção. Como viveríamos hoje sem ele?

Ainda me lembro de ver uma telenovela há muitos anos, tinham aparecido os primeiros telemóveis (uns “tijolos” que enchiam as nossas carteiras…), em que um miúdo estava a falar pelo telemóvel com um amigo, quando chega o pai e lhe dá uma valente descompostura. Pedagogicamente, lá ensinava a criança de que um telemóvel era uma coisa muito cara, para ser usado só mesmo como uma emergência, e nunca para conversas de chacha.

Rio-me tanto quando penso nisso.

Mas estava eu a dizer, que nunca fui muito de andar sempre a correr para o telefone. Mas desde que o confinamento entrou na nossa vida (ou melhor, que a nossa vida entrou para dentro do confinamento…) toda a gente começou a ligar-me. Gente que eu já não ouvia há meses. Gente que, para falar verdade, já tinha sumido da minha cabeça há que anos.

Quando há bocado ouvi aquela musiquinha irritante (a Teresa diz que posso mudá-la, mas nem sei como isso se faz) estive mesmo para não atender, eram horas de jantar, tinha de pôr a mesa, o Isidoro gosta sempre de comer à hora certa, e o arroz de pato estava no forno. Mas acabei por atender.

- “Ó minha querida, há quanto tempo a gente não se falava… Mas olha, para a semana eu falo-te com mais tempo, porque agora, desculpa, estou cheia de pressa, e olha, até é para te dar uma notícia triste, morreu o Estêvão, imagina…

Queria interrompê-la, mas não conseguia.

- “… a Palmira está de rastos, como deves calcular, e a Nandita também, coitada, perder o pai é sempre uma coisa terrível, ainda por cima agora só podem ir 10 pessoas ao enterro, de resto ela pediu ao nosso grupo que não fosse, mas, claro, não queria deixar de nos dar a notícia. Para a semana a gente fala com mais calma, beijinhos.”

Desliguei e fui ter com o Isidoro, que se despedia do Doutor.

- “Tenho uma notícia triste para te dar…”

- “Mau… se é má notícia, diz lá depressa, que eu…"

Nem o deixei acabar:

- “Morreu o Estêvão.”

- “Quem?”

- “O Estêvão… Coitado… O marido da Palmira…”

- “O marido de quem?”

- “Ó homem, da Palmira… Pai da Nandita…”

- “Eu devo estar maluco, mas não faço a mínima ideia de quem é essa gente…”

- “Nem eu. Mas a senhora falava tão depressa que nem me deu tempo para lhe dizer que era engano.”

Olhámos um para o outro e desatámos a rir.

- “Coitado, logo rezamos uma ave-maria pela sua alma, mas agora vamos jantar.”

Se o Estêvão tivesse comido um arroz de pato como o meu, ao menos teria morrido regalado.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada! 

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