sábado, 20 de junho de 2020

27ª Crónica: "Saí de casa pior que uma barata!"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

15-06-2020


Saí de casa pior que uma barata! 
Quarenta anos juntos, quarenta!!! 
E diz-me uma coisa destas!!!
Francamente que estou que nem posso. 

Sei muito bem o que dizem de mim aqui na rua.
Que sou uma coscuvilheira, que sei de tudo, que nada da vida dos outros me passa despercebido… 

Sei até que me chamam a Menina da Rádio. Lá chamarem-me menina até gosto, embora saiba bem que esses tempos vão longe. Mas não é elogio o que me fazem. Querem com isto dizer que sou linguaruda. Que injustiça!

Mas que os outros o pensem e digam (pelas costas, que na minha cara quero ver quem tinha coragem!). Agora o meu Isidoro?! Nunca pensei…

Está uma pessoa há meses trancada entre quatro paredes e, quando finalmente pode sair e diz: “Vou dar uma voltinha, não me demoro nada!”

Sai-se com esta: “Pois, faz-te falta dar à língua, é natural. Vá vai lá fazer a reportagem que deves ter muito com que te entreteres”. 

E ainda por cima riu. Riu!!!!

Eu saí de casa imediatamente, quando não, dava-me uma fúria e não respondia por mim. Nem passei um pozinho na cara nem nada. Abri a porta e bati-a com tal força que até o prédio abanou. Para o que uma pessoa está destinada. Virgem Mãe!

É verdade que gosto de me dar com toda a gente e também não nego que sou observadora. Foi para isso que nos deu Deus os olhinhos, ou não? 

Agora, que culpa tenho que me venham contar as coisas, não me dirão?

Subi a rua sem rumo, ainda a remoer a desfeita do meu homem. Não me lembro duma coisa assim. Isto é do bicharoco que para aí anda, de certeza!

Embora já se veja gente, o bairro está ainda muito deserto, com a maior parte das lojas fechadas e outras assim a modos de “meio pau”, com uma mesa cá fora onde atendem os clientes um a um. Olhem que dá que pensar. Como é que uma coisa que só se vê ao microscópio virou o Mundo de pernas pro ar.

Ia eu a magicar nisto tudo e a pensar que logo à noite me havia de vingar com um jantar de pescada cozida com batatas e sem ovo, que é a coisa pior que posso dar ao Isidoro, quando vejo sentados na esplanada da Virtudes, o Matias e a Rosa Maria em grande conversa.

Aquilo a mim pôs-me a pulga atrás da orelha. Que diabo tinham aqueles dois para conversar? Está bem, está bem, o pai dela e o Matias tinham sido colegas no mesmo jornal, pronto. Mas onde isso já ia! Além disso, nunca me constou que fossem grandes amigos, até porque um era jornalista e outro trabalhava nas máquinas.

Sem querer entrei na farmácia que tem uma montra que dá direitinha para a esplanada da Virtudes.

- “Ó D. Perpétua, não pode entrar sem máscara”. – disse-me a rapariga que me conhece há anos.

Com a fúria com que saí de casa lembrei-me lá eu da máscara…

- “Pois filha, por isso é que aqui estou. Para comprar uma."

Ela veio até cá fora e ajudou-me a pôr aquela coisa que nos faz parecer a todos, os irmãos Metralha, dos livros que as minhas filhas liam.

Mas o que eu queria mesmo, era entrar e sentar-me na cadeira do Dr. Bentinho, que tem uma vista formidável para a esplanada em frente. Não é para me gabar, mas sempre fui muito boa a fazer de conta. Até me diziam em tempos, que devia ter sido atriz. Olha, se calhar mais me valera, escusava de aturar desaforos. Passei a mão pela cabeça e fiz de conta que me ia abaixo das canetas.

- “Está a sentir-se bem”? - perguntou a rapariga

- “Não é nada, uma vertigem. Isto já passa." – Mas pelo sim pelo não apoiei-me no braço dela e fiz força, como quem se tem para não cair.

- “Vá, venha cá para dentro e sente-se aqui um bocadinho. Está pálida. Eu já lhe meço a tenção”.

- “Não é preciso filha, não se incomode. Isto é da idade. E depois de estar tanto tempo sem sair… "

- “Então sente-se aí quietinha que eu já lhe trago um copinho de água com açúcar. Quer que lhe ponha a cadeira mais para dentro”?

- “Não, não, está muito bem aqui. Isto passa!"

A cadeira do Dr. Bentinho, é daquelas histórias que toda a rua conhece. Toda a vida me lembro do velho senhor, dono da farmácia, passar a tarde inteira ali sentado, por vezes com um copinho de “tónico”, a ver quem entrava e quem saía. Olha a esse é que não lhe escapava nada. Mas, está claro, como era homem e doutor, ninguém se lembrou nunca de dizer que era a rádio farmácia cá da rua. 

Sabia tudo: quem estava com uma doença feia, quem tinha dormido com quem, quem estava de esperanças, quem nascia, quem batias as botas… tudo! 

Ao lado do cadeirão havia um banquinho, onde muitos se sentavam como se estivessem num confessionário, e ele depois de os ouvir, gritava lá para dentro a prescrição para a maleita sussurrada, o que não poucas vezes, criara situações embaraçosas.

Enfim, vamos lá ao que interessa. Bem… a mim tanto me faz como me fez, que entre o Matias e a Rosa Maria haja alguma coisa. Isto é modo de falar. Uma pessoa sente curiosidade, não é por mal. Além disso, falou-se aqui há anos – olha, na altura em que ela para aqui veio viver outra vez – que tinha um namorado mais velho que podia ser pai dela. Mas por esse tempo, se a memória me não falha, estou em crer que o Matias ainda estava com a mulher. O que também não quer dizer nada, verdade seja dita. 

A Sr.ª D. Idalina, uma Santa duma Senhora, a quem todos quase beijavam a mão, como se fosse a Virgem do Rosário, um belo dia também fugiu com o primo do cunhado que tinha voltado da França. Depois de ter fugido ao serviço militar, e de ter deixado na aldeia, a mulher e uma filhinha de colo. Isto quem me contou foi a Virgínia, que ia passar a ferro a casa da D. Georgete, que por sua vez, era unha com carne com a Ermelinda, a quem a D. Idalina mandava apanhar as malhas nas meias de vidro. É o que eu digo: Quem vê caras não vê corações.

Por falar em corações, aqueles dois estão para ali tão entretidos na conversa como dois namorados. Eu não me chame Perpétua ou ali há gato.

Olha, olha, vão-se embora.

- “Aqui está D. Perpétua, um copinho com água e açúcar. Desculpe lá, mas estou sozinha e o telefone não parava de tocar”.

- “Não é preciso, estou muito melhor. Adeusinho e obrigada”.

Se não me apresso, ainda os perco de vista, que as pernas já não acompanham o olhar.

Água com açúcar, que mania!

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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