sexta-feira, 18 de setembro de 2020

43ª Crónica: "Uma tarde dirigi-me à Alunos de Apolo”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

14-09-2020


E encontrei!

Uma tarde dirigi-me à Sociedade Recreativa Alunos de Apolo, uma das mais antigas e afamadas academias de dança do país. Daqui saíram os vários bailarinos premiados que temos.

Para além das matinés dançantes, os Alunos de Apolo tinham ainda aulas de todo o tipo de dança de salão, desde a clássica valsa até ao kuduro importado de África e que fazia as delícias da temporada.

Inscrevi-me em várias modalidades e esperei.

O programa de TV mostrara-o dançando músicas latino americanas, mas nada garantia que fosse frequentador de classes. 

A minha aposta era nas matinés dançantes. Mas depois dum mês inglório, começava a desesperar.

Há quem diga que Deus recompensa a perseverança. Pelo menos isso seria o que o Matias me diria caso soubesse da minha empreitada. 

Uma bela tarde vejo-o entrar como um dândi seboso, olhar correndo toda a sala como um predador e o meu coração saltou no peito, num misto de horror e euforia. 

O jogo começava.

Não é para me gabar, mas tenho um palminho de cara e alguns atributos físicos que me valem não poucos piropos na rua. E sim, gosto de alguns piropos, o que, para algumas franjas do momento, me torna uma traidora de género. Paciência!

Tinha, aliás, sempre um esmero especial de cada vez que aparecia nos Alunos, fazendo valer o decote e as pernas nuas, o que chamava bastante a atenção masculina.

Segundo a Vera, que conhecera nas aulas de Tango, e que tinha tanta destreza para a dança como eu para bordar arraiolos, os homens, ali, dividiam-se em dois grupos: os marialvas e os maricas.

Eu, francamente, não concordava completamente com essa distinção. Mas não podia deixar de concordar que havia, efetivamente, um grande número quer de uns quer de outros. E não, não me refiro a homossexuais, que esses são por norma perfeitamente indiferenciados. Refiro-me a homens provocatoriamente efeminados e com tiques que fariam corar qualquer mulher.

Mas voltando à história, ali estava o meu alvo, de fato completo, ostentando, como um troféu, a sua idade, tentando conferir-lhe uma dignidade que eu bem sabia não ter.

Fiz-me notada, dançando com este e com outro, em poses mais ou menos provocantes e requebros prometedores. Naturalmente, atraí a caça.

- A menina concede-me esta dança?

Como se fosse um ator dum filme dos anos vinte estendeu-me a mão. Toda eu tremia, mas apenas por dentro, na alma. Por fora estava especialmente calma.

Coloquei a minha naquela mão de sanguinário como se fosse uma princesa e dançámos. O diabo do homem dançava muito bem. Quase que nos fazia esquecer o seu passado de polícia do regime. Quase…

- Então, lá pegaste o Conde Drácula - comentou a Vera quando finalmente, ao fim de três músicas, me juntei a ela na mesa.

- Conde quê? - perguntei, pensando por segundos, que todos ali saberiam o passado da personagem.

- Drácula, pá. Tu já viste o estilo? Parece saído duma revista do tempo das nossas mães. Só que aquele traço farfalhudo na testa dá-lhe um ar arrepiante. Brrr… não deixava que me tocasse nem com uma pinça.

Eu ri aliviada.

- Mas dança bem…

- Ah, lá isso é inegável. Também não deve fazer mais nada na vida. Passa os dias por aqui.

- Engraçado, ainda não o tinha visto.

- Pelos vistos foi à “terra”, lá para cima, para o norte. Uma questão de partilhas, ao que consta. Mas olha que nunca passa mais que uma semana sem pôr aqui os pés. E mesmo assim, só se estiver doente.

Recolhi a informação, guardei-a e fui-me embora.

Conferi a veracidade do que a Vera dissera. O homem, que vim a saber chamar-se Anselmo, passava os dias na Sociedade. Ora a dançar, ora à conversa com este e aquele.

Não foi preciso grande esforço para, após mais umas danças, o levar a convidar-me para: “- Um chá, um refresco… Isto se não se incomoda de ser vista com um homem com idade para ser seu pai”, propôs.

Aceitei e consegui mesmo lançar uma gargalhada com que o tranquilizei: “- Gosto de homens mais velhos. Fazem-me sentir segura!”

Começou assim uma… relação? Não, amizade? Também não… Chamemos-lhe uma dança entre um caçador que ainda não se apercebera que não passa duma presa e uma suposta presa com um espírito de caçador de grande porte.

Uma tarde de calor infernal, em que trocáramos os salões de chá de que tanto gostava por uma esplanada no bairro, defronte de duas imperiais geladas, forneceu-me a arma do crime.

- Trazia-me um pratinho com amendoins? - pedi. Evitava sempre tomar álcool, fosse qual fosse a quantidade, sem revestir o estômago. Temia perder o sangue frio, essencial naquele jogo, que já se arrastava há demasiado tempo para o meu gosto.

Cheguei a pensar em contratar meia dúzia de tipos para fazerem o trabalho por mim. Sabia que havia inclusive quase um menu de “serviços “: uma perna partida - X; uma sova simples - Y; um traumatismo - Z…, mas o que eu queria era o prato principal - queria-o morto.

- E um de tremoços. Para mim os amendoins são mortais. Alergia em último grau. Já estive às portas da morte por causa deles. Valeu-me estar perto do "Santa Maria" e terem-me dado uma injeção. Nunca me tinha acontecido, mas parece que podemos ficar alérgicos dum momento para o outro. E se eu gosto dos malditos! - suspirou.

- Que horror! Mas se calhar já passou… - tentava saber mais e mais daquela fragilidade que parecia ter caído do céu.

- Não. Uma vez alérgico, sempre alérgico. A garganta parece que se fecha e o ar não entra. Um horror!

- Quer dizer que corres o risco de morrer asfixiado?

- Exatamente. Ainda por cima uma morte lenta e angustiante. Nem quero pensar.

A partir desse momento o trunfo estava definido. Era apenas uma questão de urdir o cenário.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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