terça-feira, 1 de setembro de 2020

41ª Crónica: "O Mundo está mudado! Agora só de máscara se entra num banco!”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

27-08-2020


Dizem que o músculo do coração, como qualquer outro, tem que ser treinado para se fortalecer, com alegrias, surpresas boas, sustos e medo.

Hoje, o meu que batia tranquilamente há muito tempo, num ritmo de passarinho, como compete a qualquer músculo que se preze e que chegue à idade dos noventa, teve uma atividade que no mínimo, o rejuvenesceu para mais uma década.

Foi um dia maravilhoso, daqueles que nos fazem dar graças por estarmos vivos, por podermos desfrutar de tudo quanto esta passagem pela vida nos oferece a cada momento.

Começou logo pela manhã, com uma enorme gargalhada que me trouxe lágrimas aos olhos e me deixou sem fôlego.

Fui pôr-me à janela, à espera de ver passar a Rosa Maria e, a pensar com os meus botões, como era bom ver de novo gente na rua, para cima para baixo, mesmo com meio rosto tapado. 

Se bem que a maioria só coloca a máscara quando se cruza com alguém, que aquilo faz um calor que nem vos digo. 

E eu só a usei uma vez, quando o marçano veio entregar as compras, logo no início do desconfinamento. Foi uma vez sem exemplo. Decidi que mantínhamos o ritual antigo, de me deixar as compras cá em cima, sobre o tapete e tocar à campainha. 
Eu, entretanto, deixo-lhe num envelope o dinheiro das compras anteriores e … em paz!

Até esta coisa do bicho se ter instalado entre nós, era a menina da Segurança Social quem, todos os meses, ia ao banco levantar a minha pensão ou tratar das contas que fosse preciso.

Ora, a partir duma certa altura e com a desculpa de protegerem os velhos, acabámos por ficar para aqui abandonados e pronto.

Bem… para ser sincera, no meu caso, não foi assim. Já contei que me desentendi com ela e que a mandei passear. 

Nessa altura, a coisa estava controlada, porque o meu João ainda cá estava e passou ele a levantar o dinheiro e a pagar na maquineta o gás, a luz, a água e o que mais houvesse.

Com a ida dele lá para a terra da Rainha, fiquei sem o meu Príncipe e a coisa complicou-se.

Mas embora eu nunca tenha sido de grandes missas e terços, o certo é que devo ter um Anjo da Guarda daqueles muito bons, pois na mesma altura em que começaram a falhar as economias que sempre tenho guardadas para uma necessidade, foi quando a Rosa Maria começou a aparecer cá pela rua e, a parar por baixo da janela ou a tocar à campainha, a saber se preciso de alguma coisa.

Rapariga como aquela, há poucas! Feliz do homem que a levar…

Pois dizia eu que me pus à janela com o fito de a ver surgir na rua. Precisava que me fizesse o favor de me ir pagar as contas e de me trazer dinheiro. A minha geração confia mais no colchão onde se deita, do que nos bancos onde qualquer um pode deitar a luva ao que não lhe pertence. O pé de meia sempre à mão, é o que toda a vida ouvi dizer.

Para fazer tempo, tentava adivinhar as caras por debaixo das máscaras: “ Aquele pelo andar parece-me o genro da Aninhas. Esta é a Goreti de certeza. Aquele corte de cabelo e a forma de abanar as mãos enquanto caminha, não deixam dúvidas. Este não faço ideia nenhuma quem seja...” 

Até que a vi surgir, descendo a rua naquele passo que já reconhecia bem e que era o mesmo passo de menina. Só com pernas maiores, evidentemente.

Vinha sem máscara, porque o passeio deste lado estava vazio e assim que me viu acenou-me. Fiz-lhe sinal para que subisse e abri-lhe a porta da rua, sem esperar pelo toque.

Entrou mascarada, pois claro, mas depois defronte do chá e à distância regulamentar, pusemo-nos ambas à civil.

Não ficou muito tempo, estava apressada. Ai estes jovens, sempre a correr, sem se darem conta que correm para coisíssima nenhuma. Pouco depois, levantou-se.

– Então está combinado . Deixa-me lá pôr a máscara e ir ao banco. Aproveito e tiro dinheiro para mim também.

Olhámos uma para a outra e desatámos numa gargalhada.

O Mundo tinha de facto mudado! Agora só de máscara se entra num banco. Quem havia de dizer hein???

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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