segunda-feira, 13 de julho de 2020

34ª Crónica: "Não costumo receber muitos telefonemas de gente da Arruda."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

12-07-2020


Não costumo receber muitos telefonemas de gente da Arruda. 
Da minha família já não há lá ninguém, e os amigos que ainda por lá restam, com a minha vinda para Lisboa, perdi-os de vista. 
Por isso, admirei-me quando reconheci a minha amiga Isaura no telemóvel.

Pareceu-me sentir um leve riso na sua voz, mas mesmo assim assegurei-me de que não tinha morrido ninguém.

- Não, não… Era só para te falar de um negócio que talvez te interesse.

Aí o riso dela rebentou mesmo, e a gargalhada da Isaura era inconfundível…

- Um negócio? Desembucha, mulher.

Mais outra gargalhada.

- Ainda te lembras do Sr. Acácio?

Foi a minha vez de rir.

- Ó Isaura… Então não me havia de lembrar… Mas ele não morreu já ?

- Morreu. Mas tem filhos. E os filhos, acho que se estão marimbando para a casa, vivem em França, só cá vêm de vez em quando, e puseram a casa à venda.

Calou-se ela e calei-me eu.

- A casa da Prima Ofélia está à venda? - murmurei.

- Está. E eu pensei que tu talvez estivesses interessada… Nunca se sabe, podias querer começar um novo negócio…

Aí é que rebentámos as duas. Eu ria tanto, mas tanto, que tive de me encostar à parede para não cair. Chamei-lhe todos os nomes, ela continuava: “nunca se diz não a um bom negócio…” - e não parávamos de rir.

Então, lá disse à Isaura que parvoíce tem limite, e que lhe telefonava depois para nos rirmos um pouco mais.

O Isidoro veio ver que risota era aquela, e bastou eu dizer-lhe:  “a casa da Prima Ofélia…” para as gargalhadas dele fazerem coro com as minhas:

- A santa… A santa da família…

A Prima Ofélia. Há quantos anos não me lembrava da Prima Ofélia.
Toda a gente sabia que a Prima Ofélia era santa. 
Lembro-me dela muito feia, muito velha, a falar sempre muito baixinho, de olhos postos no chão.

Nunca íamos a casa da Prima Ofélia… Era voz corrente que o marido lhe deixava o corpo cheio de nódoas negras de tanta tareia, que regateava até ao último tostão o dinheiro que lhe entregava, e que não gostava de nós.

Quando ele morreu, passou ela a vir muito a nossa casa. Nem nos passava pela cabeça ir à dela, que até era longe da nossa. Trazia-me sempre chocolates, livros de histórias, e ninguém sabia como ela arranjava dinheiro.

- Coitada, deve passar fome para ser simpática para nós… Santa, uma santa.

E, se calhar por ser uma santa, a Prima Ofélia morreu muito velha. 
Tão velha que, lá na Arruda, só a mãe da Isaura e a minha mãe é que ainda eram vagamente familiares dela. 

O senhorio ligou com alguma pressa de ter a casa de volta, nós que lá fôssemos despejá-la o mais depressa possível.

- Não estou para aturar o Acácio - disse a minha mãe - vai lá tu e a Isaura, que são novas e têm mais paciência.

Para além de santa, a Prima Ofélia era o cúmulo da arrumação, como verificámos assim que entrámos. Os quartos todos arranjados, almofadas e colchas garridas, e pelo ar um forte cheiro a incenso e a flores de papel.

Quando abrimos as gavetas, não havia nada, rigorosamente nada fora do lugar. Uma série de envelopes, todos empilhados uns sobre os outros, e uma série de documentos todos presos por um clip.

Estávamos nós no nosso trabalho, quando tocou a campainha.

Abro a porta e uma força da natureza feminina, dois metros por dois metros, sem se apresentar, pega nas minha mãos e diz que sempre foi de boas contas e “mesmo com essa santinha morta, coitadinha, estou aqui para pagar o que devo.”

Digo-lhe que não sabemos de nada, que já vimos os documentos todos e não há nada para pagar, mas ela entrega-me uma data de notas, presas por um elástico, e continua:

- Ai isso é que há. Sim, porque aquela santa sabia como a nossa vida é difícil, quem lhe chamou fácil só podia ser um estuporado de um homem, e nem sempre lhe podíamos pagar os quartos a horas, por isso ela deixava-nos pagar quando tivéssemos dinheiro, e logo havia de me morrer num mês em que lhe fiquei a dever...

Devolvo-lhe o dinheiro, mas ela volta a enfiar-me as notas nas mãos: “era o que faltava, sempre fui de muito boas contas”. 

Digo-lhe que a casa agora é do senhorio. E ela desata num pranto de genuína saudade pela prima Ofélia, e pergunta como é que ela e as meninas vão agora arranjar outra santa como aquela, que lhes fiava os quartos quando a freguesia rareava.

Só me lembro de a ver descer as escadas a fungar: “ai, a minha rica santinha, ai a minha rica santinha”, a Isaura de olhos esbugalhados, eu com uma data de notas nas mãos, e a santidade da Prima Ofélia a esboroar-se lentamente pelos meus dedos.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

Sem comentários:

Enviar um comentário