quinta-feira, 23 de julho de 2020

35ª Crónica: "Acabei por não concluir a razão..."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

21-07-2020


Acabei por não concluir, a razão pela qual, a minha vida foi o que foi por me chamar Matias.

Estava eu em plena navegação pelo passado quando tocou o telemóvel. 
Ao princípio ainda pensei que não era o meu, já que o som era tão abafado e longínquo. Mas, perante a insistência do bicho e o facto inegável, de me encontrar sozinho em casa, não tive outro remédio senão começar a levantar almofadas, a procurar por detrás de livros, até o ir encontrar caído entre a sala e a varanda, semiescondido pelo cortinado. 
Eu bem digo que esses bichos têm pernas! 
Que outra explicação existe para ter ido parar ali?

Está bem de ver que, mal lhe peguei e gritei “estou?!”, o bendito aparato calou-se. Número desconhecido… alguma publicidade ou coisa que o valha. Mal me tinha sentado de novo no sofá e novamente o som irritante de chamada. Estive vai que não vai para não atender.

- Estou?! – espantei-me com o som da minha voz, alguns decibéis mais altos.

- Sou eu… – respondeu-me uma voz sumida, chorosa, que levei segundos a identificar.

- Patrícia? Porque é que me estás a ligar dum número desconhecido?

- Porque estou aqui no Lar e com a aflição esqueci o telemóvel em casa. É o meu pai. Parece-me que apanhou o vírus.

Tive que morder a língua, respirar fundo para não responder que tinha pena do vírus e que erva ruim não a queima a geada, como se comprovava pelos quase cem anos daquela peça. Mas contive-me. Afinal era o pai dela e o avô dos meus filhos! Não deixava de ser um fascista do pior, um tipo que teria certamente contas a prestar ao Altíssimo, caso acreditássemos no Inácio, mas que aqui na Terra semeara o Inferno em muitas vidas.

– Que chatice! – foi o melhor que consegui responder.

– Bem sei que tu e ele… enfim… mas não queria deixar de te avisar no caso de acontecer o pior – a voz ia-lhe ficando mais fraca a cada palavra, como se as lágrimas estivessem ali à distância duma inspiração mais profunda.

Pobre Patrícia. É bem certo que o sangue sempre fala mais alto! Depois de tudo o que aquele canalha lhe fez, ainda era capaz de sentir, não sei se amor, mas qualquer coisa parecida com isso.

– Fizeste bem. E, olha, se puder ser útil em alguma coisa – palavras de circunstância, nada mais. Tal como a resposta dela.

– Obrigada, eu sei que posso contar contigo.

– Sempre. Um beijinho. Coragem – e desligámos.

Fiquei ali, de telemóvel na mão, a olhar o vazio, enquanto pensava no que o tempo faz às pessoas e aos sentimentos. 
Como era possível que uma paixão como a nossa se tivesse esboroado como um castelo de areia? 
Durante muito tempo acreditei que a culpa tinha sido exclusivamente minha. Mas o tempo tem também esse lado balsâmico que tudo coloca em perspetiva. 

O meu afã em procurar a notícia, em me envolver politicamente, mais e mais, era apenas a minha forma de fugir duma casa e duma família que me tolhiam e me sufocavam. 

Eu tinha vergonha de sentir assim. Mas a vergonha não apaga os sentimentos. Talvez tivesse conseguido viver assim o resto dos meus dias, mas a Patrícia tinha tido um exemplo próximo do que era viver amortalhado e, tal como a mãe muitos anos atrás, um belo dia fez as malas pegou nos miúdos e bateu com a porta.

Primeiro atordoado, um pouco à deriva, depois aliviado e quase grato, organizei a minha vida de celibatário. 

Posso dizer que antes de ser preso pelo raio do bicho com coroa era um homem feliz. Tinha uma ou outra namorada, cada uma de sua vez, note-se, nada sério, não dependia de ninguém, nem ninguém dependia de mim.

A solidão é um estado de espírito e isto não é um chavão. 
Nunca senti grandemente a solidão por estar sozinho, e a velhice que leva tantos a aguentar relações ocas, de anos e anos, a mim, nunca me assustou. Afinal todos morremos sós.

Até aquela besta do meu sogro! Só espero que não tirem ninguém do ventilador para o pôr a ele! Se fosse no tempo da “outra senhora” não me admiraria, agora assim e com esta idade…

Estou mesmo a imaginar o Inácio a abanar a cabeça dizendo:

– Que falta de caridade, ó Matias!

Paciência, velho companheiro! Creio ter sido um bom comunista, mas não me parece que seja um bom católico. Essa coisa de perdoar e de dar a outra face… é difícil, sabes?

Não conheci a minha sogra (engraçado… temos ex-mulheres, mas sogros é para a vida, vá lá saber-se porquê) e confesso que lamento. Uma mulher que naquele tempo, em que a honra se lavava com sangue, teve a coragem de sair de casa, não uma, mas duas vezes, é de se lhe tirar o chapéu!

A verdade é que, embora cheio de pergaminhos e temente a Deus (vês Inácio? São estas coisas que me confundem a fé), o senhor gostava de “molhar a sopa” e todas as “razões” lhe serviam: um homem que olhara mais prolongadamente a sua mulher, certamente porque ela o incentivara, a comida menos apurada ou uma camisa cujos punhos não estavam imaculadamente passados, porque a dona da casa não tinha mão nas criadas, o choro da criança porque de certeza que a “desmazelada” se esquecera das suas obrigações de mãe… enfim, tudo era motivo para uma bela sova.

Presa a um casamento que só a morte podia dissolver e temendo pela vida, um belo dia pegou na filhinha de colo e saiu de casa. Sem mais dinheiro do que aquele que tirara da caixa do dinheiro para as despesas da semana, conseguiu chegar ao seu Porto natal, onde uma mãe viúva a acolheu no casarão da Foz. Também ela soubera o que era ser “submissa e do lar”. Tivera a sorte de enviuvar cedo, e com uma herança considerável que lhe permitia poder viver sem depender de homem algum.

Durante algum tempo viveram felizes naquela vila matriarcal, frente ao mar.
Foi nessa casa que a Patrícia deu os primeiros passos e foi no mar revolto da Praia dos Ingleses que pela primeira vez molhou os pés.

Mas o paraíso é sempre um sonho perdido…

Humilhado na sua masculinidade, olhado com censura pelos seus pares que não lhe perdoavam não “ter mão na mulher”, Joaquim Apolinário (assim se chamava o animal, ou melhor, chama, que pelos vistos continua a fazer negaças à morte) decidiu comportar-se como um “homem civilizado” e deixar o caso na mão da justiça, que conhecia por dentro e por fora, ou não fosse ele um reconhecido advogado do regime.

Foi essa a razão pela qual, um belo dia, uma patrulha da GNR tocou à campainha do palacete com ordem para que a fugitiva retornasse ao lar.

Revoltada, a avó da Patrícia ainda tentou impedir a situação, mas de nada valeu, e mãe e filha voltaram a Lisboa, onde as esperava um fulano Apolinário que assim podia voltar a andar de cabeça erguida e mostrar ao mundo que era senhor incontestável da sua casa.

O que até ali tinha sido um purgatório, rapidamente se transformou num Inferno para a pobre senhora que, volta não volta, dava entrada no hospital com algumas fraturas devidas a “uma queda nas escadas”. 

Às receções, acudia com o rosto tão carregado de maquilhagem para disfarçar as nódoas negras, que se tornava doloroso sorrir, comer ou beber.

Toda esta história ficamo-la a saber, apenas quando o velho deu entrada no lar e se fez uma arrumação de papeis e tralhas na casa que ocupava. 
Ali, no meio dos dossiers de processos, acumulados ao longo dos anos, fomos dar com um enorme maço de cartas atadas com um elástico.

Eram as cartas que a mãe da Patrícia lhe tinha escrito ao longo dos anos e que o verdugo, empenhado em manter a farsa da morte precoce da mulher, que deixara uma filhinha tão pequena ao cuidado do pobre viúvo, nunca lhe mostrara.

Foram tempos muito difíceis e o golpe fatal no nosso casamento moribundo.

Patrícia debatia-se, sentia-se perdida e duplamente defraudada. O pai “matara” a mãe, privando-a desde muito cedo dum amor maternal que não podia retomar, já que a senhora acabara por falecer, convicta de que a filha não queria saber dela e a votara ao esquecimento.

Lembro-me duma noite (uma das nossas últimas noites nesta casa) por entre as lágrimas de tristeza e raiva, a Patrícia ter desatado a rir compulsivamente. Era um riso que dava calafrios e confesso que, por segundos, temi que toda aquela história tivesse despoletado qualquer doentio estado mental. Por entre as lágrimas e o riso estridente ouvi-a dizer:

- Há quem não tenha onde cair morto. Na minha família, os mortos têm duas campas.

Quem estaria no esquife do jazigo da família sob o nome de: “Carolina Apolinário, dedicada esposa e mãe amantíssima”?

Fosse quem fosse, fiquei satisfeito por saber que, pelo menos na morte, a boa da senhora tinha conseguido escapar ao seu algoz e descansar em paz no seu Porto natal.

E pronto, ainda não foi desta que contei a história do meu nome.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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