sábado, 25 de fevereiro de 2023

"Postal do Dia" - Luís Osório

"Postal do Dia", com Luís Osório, é um programa da TSF, de segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e durante cerca de 2 minutos. 
"Postal do Dia", um programa de poucas palavras mas com ideias que fazem pensar.
https://www.tsf.pt/programa/postal-do-dia.html

"A mais generosa mulher que conheci não merecia o que a vida lhe fez"


1. - Conheci a São Correia num lançamento de um qualquer livro. Tornámo-nos amigos. Durante uns anos fomos falando e dizendo das nossas vidas. A São não chegou a conhecer a minha família e eu também não conheci a dela, mas foi como se tivesse acontecido.

A história que te quero contar é esmagadora. Para mim foi esmagadora.

A São é uma mulher generosa, daquelas pessoas raras que a maioria de nós não consegue entender - a que despe o casaco para oferecer a quem não o tem, a que ajuda nas associações de bairros problemáticos, de segregação racial, de discriminação sexual.

Ela não tinha mãos a medir. Em Oeiras era conhecida por uns olhos que sorriam ainda mais do que os lábios. Olhos expressivos, carinhosos, interessados pelo mundo e pelo sofrimento dos outros. Ela saia à rua e era abordada por este e aquele, por esta e aquela. Resolvia problemas, mexia-se para oferecer soluções.

E era produtora de um grupo de teatro amador. Fascinava-se com os atores, chorava baba e ranho com a força do texto, fascinava-se com a construção do espetáculo, fazia com que todos acreditassem que seria um sucesso, mesmo que não estivesse ninguém na sala seria um enorme sucesso.

2. - A gargalhada da São Correia é lendária. Recordo-me de um almoço na Associação de Cabo Verde e por entre uma bela cachupa não me sai da cabeça o som da vida que lhe escapava da garganta. Naquele corpo baixinho parecia estar concentrada a força do que nos faz ser maiores, não te sei explicar melhor do que isto.

Nunca conheci o Pedro Jorge, o marido. Nem os seus três filhos.
Ou as meninas adotadas que sempre estiveram com ela, que sempre frequentaram a sua casa. Ah, porque a São também se envolvia e ajudava no clube de andebol do seu bairro e levava as que tinham dificuldades, por vezes as que tinham fome, a lanchar a sua casa.

3. - A vida tem coisas que não entendemos - acredito que não temos de entender, é o que é.
A São Correia, esta mulher que te apresentei, seria a última que mereceria sofrer. Aliás, nem me passaria pela cabeça que pudesse sofrer por nela a vida correr tão poderosa.
(Ainda ontem te falava disso).

Mas foi a ela e à sua porta que bateu o sofrimento mais atroz.
Há três anos foi-lhe diagnosticada Esclerose Lateral Amiotrófica. 
E a doença galopou a uma velocidade tal que hoje não se consegue mexer, não fala e apenas respira com a ajuda de um ventilador.

4. - A São comunica pelo movimento dos olhos através de uma aplicação tecnológica.
A sua cabeça está perfeita, pensa à velocidade de sempre ou agora mais depressa ainda. Consegue teclar e responder a amigos por palavras que lhe custam a sair, mas que os seus dedos conseguem resgatar.
Na sua casa de Caxias há amigos todos os dias. Amigos que se comovem e que a comovem, amigos que lhe retribuem todo o amor e proximidade que ela lhes ofereceu em vida.

E o Pedro, claro. O Pedro que a trata como se fosse uma princesa.
A esta hora, ao ouvir princesa, a São deve ter mexido muito os olhos - princesa, Luís? Eu não sou princesa, sou republicana e de esquerda. 
Concordo, São. Mas és uma princesa republicana e de esquerda.

Uma mulher incrível que tenho tanta pena que não me possa ver em palco no monólogo que estou a fazer em teatros tão grandes e assustadores.
Certamente que lá estaria na primeira fila da Casa da Música, no dia 15 de março. Certamente que me daria um abraço no camarim antes de subir ao palco.
Certamente que entraria acompanhado pela sua energia e a achar que marcaria a história dos que me vissem. 

Não será possível, não me poderás ir ver a lado nenhum.

Mas eu posso ir ter contigo. E em tua casa, na véspera da Casa da Música farei os Ficheiros Secretos só para ti.

Até já, São. Prepara o quarto.

Meu comentário:

Boa Noite, Caro Luís Osório,
Vou acompanhando estes seus "postais" os quais me acalmam a alma dado o tom sério, sincero, honesto e fraterno com que são escritos e falados.
Este contém uma tal força forte que, através das suas palavras, conseguimos conhecer e sentir a situação injusta em que se encontra a sua Amiga São Correia e família. 
Sim, porque estas doenças afetam sempre toda a família. É inevitável. 
Obrigada pela sua tão grande lucidez com as palavras. 
Continue! Não é uma ordem mas sim um pedido.
Um abraço

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