domingo, 4 de outubro de 2020

45ª Crónica: "Noite de Santo António acaba com um cadáver em bairro popular de Lisboa”

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza,
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

21-09-2020


A idade tem destas coisas. 
Chegamos a uma dada altura e começamos a fazer balanço. 
E quer melhor sítio para tal que defronte do mar revolto da Ericeira?
Sentado com os pés enterrados na areia, sentindo os últimos raios quentes do Verão, pus-me a deambular pelo passado.

Não acredito nos que dizem que fariam tudo igual outra vez. 
Tenho sempre a sensação de que, ou mentem ou são burros. 
Sim, porque tal como dizia a minha avó (se calhar não dizia mas pronto), só os burros não aprendem com os erros. 
E não me venham dizer que há alguém que nunca os cometeu! 

Eu então foi um fartote! 
Mas, como diz a canção, no balanço de perdas e danos, embora tenha tido muitos desenganos, acho que o saldo é positivo.

Das poucas coisas que ainda hoje me atanazam o espirito, está aquela noite de Santo António, haverá para aí uma década. 

Foi a última vez que o vi.

Subia eu a rua, quando já perto de casa, um vulto me envolveu nos braços.

Primeiro pensei que era mais um folião bêbado de Santo António, embora a noite fosse ainda jovem para tamanha bezana.

Afastei-o e foi aí que o reconheci: o homem da monosobrancelha.

Estava velho, magro, mas mesmo assim não havia dúvida: Era ele!

Eu que o fazia morto e enterrado, tive um calafrio, logo seguido dum acesso de raiva que em mim não é propriamente usual. Pelo menos assim, sem qualquer razão.

- Que andas por aqui a fazer desgraçado? - Tentei empurrá-lo mas ele agarrava-se a mim como um náufrago. Parecia querer falar mas não lhe saia um som.

- Larga-me estupor.

Embora velho, o gajo tinha uma força de mil diabos. Com os olhos exorbitados, abrindo a boca como um peixe fora de água,  puxou-me para uma verdadeira dança de S. Vito que durou alguns segundos.

Entre puxões e empurrões, varremos a rua dos caixotes de lixo com enorme alarido.

O homem agarrara-se a mim como uma lapa, vá lá saber-se porquê.

Em bom rigor, eu conhecia-o, mas ele a mim certamente não. Tenho uma daquelas caras iguais a centenas de outras anónimas, sem qualquer sinal especial. Já ele…

Por fim consegui libertar-me com um empurrão mais forte. Desequilibrando-se caiu de costas no degrau da entrada do prédio e ali ficou sem dar acordo.

Afastei-me como se se tratasse dum leproso imundo e subi a rua sem olhar para trás. Ainda ouvi abrir-se uma janela num andar qualquer mas não me voltei.

Só no dia seguinte lembrei-me do som de melancia a quebrar que se seguira à queda do patife. Esse som e essa dúvida ainda hoje me perseguem.

Até porque na verdade, não foi essa a última vez que o vi. Mas então, já muitos o rodeavam e a polícia mandava dispersar que ali já nada mais havia a fazer.

Foi a primeira vez que escrevi duas linhas de fait-divers no jornal: “ Noite de Santo António acaba com um cadáver em bairro popular de Lisboa”.

Embora o soubesse, não lhe dei nome. 

Anónimo era mais fácil esquecê-lo.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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