sábado, 17 de outubro de 2020

47ª Crónica: "Dez anos! Uma década! E no entanto lembro-me como se fosse hoje!"

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

16-10-2020


A oportunidade surgiu em plena noite de Santo António, faz agora dez anos.
Dez anos! Uma década! E no entanto lembro-me como se fosse hoje!

O Anselmo convidou-me a ir ver as marchas na Avenida.

- Num lugar de primeira, Rosinha! - sublinhou - Favores de outros tempos - e piscou-me o olho.

Acho que nunca o odiei tanto como nessa altura. 
Aquela ideia, de que ainda havia quem pagasse favores a um tipo daqueles, revoltava-me até ao mais profundo de mim.

- Mas é uma péssima noite para jantarmos. Tudo cheio… Tenho uma ideia: que me dizes de jantarmos lá em casa e seguirmos dali para as marchas?

O homem andava mortinho por entrar em minha casa, esperançoso de passar ao “nível seguinte”.

Respondeu de imediato que sim e acrescentou brejeiro e nojento:

- O mais que pode acontecer é vermos as marchas pela televisão.

Combinámos que passaria lá em casa por volta das oito e que levaria o vinho.

Eu não o queria demasiado tempo a conspurcar aquele local. 
Parecia-me quase uma heresia que pisasse o mesmo chão que uma das vítimas. 

Mas não havia remédio.

Durante dois dias pesquisei receitas e receitas até encontrar o que queria: Uma sobremesa que levava manteiga de amendoim.

Assim que encontrei senti uma serenidade e uma frieza que desconhecia. 
Não tinha qualquer tipo de remorso ou dúvida: ia matar o bastardo.

Sempre que me lembro daquela noite, sinto o calor abrasador da Lisboa em festa. 
O ar cheirava a manjerico e sardinha assada e, a esse outro aroma que ninguém define, mas que só pode ser encontrado aqui, nos bairros populares desta cidade e, a brisa trazia a música dos vários arraiais.

A mesa estava um primor, o jantar cheirava divinamente, tudo a postos para o grande final.

A campainha tocou às oito horas em ponto.

Vinha de fato completo de linho creme, sobre uma camisa branca. 
Dir-se-ia um brasileiro do Sec. XIX. 
Elogiei-lhe a aparência, conhecendo-lhe a vaidade. 
Na mão um manjerico com uma quadra de namorados e envasado num belo vaso de estanho. 
Fez-me lembrara a Canção de Lisboa, mas em mau.

- Tira o casaco, fica à vontade.

Foi o que fez. 
Um quarto de hora depois parecia estar em sua casa, procurando um saca rolhas nas gavetas da cozinha, para abrir o vinho e “fazê-lo respirar”.

O jantar foi uma provação que aguentei estoicamente, rindo e conversando com uma animação que não sentia.

Até que chegou o momento da sobremesa.

Da cozinha, trouxe o prato com o pudim, como se transportasse a travessa com a cabeça de S. João Baptista.

- Ah pudim. O que eu gosto de pudim!!! - quase bateu palmas, o desgraçado.

Servi-lhe uma fatia generosa e, nem esperou que eu própria, me servisse para começar a comer.

- Delicioso minha querida, delicioso. Há aqui um toque, um sabor que não identifico, mas que é divinal.

Eu olhava-o, pensando, quanto tempo levaria a finalmente fazer efeito o ingrediente fatal. Pusera dose redobrada, mas… e se afinal, dessa maneira, a coisa não funcionava? E se…

Ele continuava a falar entusiasmado, não dando mostras de qualquer incómodo. 

Começava a temer pelo meu plano.

De repente, vejo-o mais vermelho e a suar.

- Está tudo bem? - perguntei, vendo-o arfante.

- Não sei, parece que me falta o ar. Não sei…- dizia, enquanto afastava um pouco o colarinho da camisa.

Levantei-me e abri a janela.

- Um pouco de ar, vai fazer-nos bem. Este Verão promete!… - disse eu, com uma ligeireza na voz que não sentia no coração.

Mas, perante o ar cada vez mais aflito e congestionado, propus:

- Será melhor irmos ao hospital ou a um Centro de Saúde. Com tanto azar que vi sair o vizinho cá de cima que é médico, ainda há pouco...

Arrogante fez-se de forte.

- Isto é do calor. Um pouco mais de vinho fresquinho e outra fatia fininha desse pudim e fico fino.

Ainda não tinha dado duas dentadas e já os olhos se lhe reviravam.

- Vamos Anselmo, rápido para o hospital.

Fez sinal de pegar no casaco.

- Deixa ficar não percamos tempo, vamos. Tenho o carro aqui à porta.

A vantagem de se viver num rés do chão é que raramente nos cruzamos com alguém nas escadas. Abri, olhei o patamar deserto e puxei-o por um braço como se o ajudasse.

À porta da rua deixei–o passar à frente, aflito em buscar o ar da noite.

Olhei-o nos olhos e creio que nesse momento alguma coisa dentro dele o alertou. 

Ainda deitou a mão para impedir que a fechasse com um enorme estrondo, deixando-o do lado de fora.

- Vai morrer no Inferno desgraçado. E já agora o vinho branco não respira!

Pois… e ele também não.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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