quinta-feira, 29 de outubro de 2020

49ª Crónica: "Quer-me parecer que desta vez o frio já chegou para ficar."

PÓ DE ARROZ E JANELINHA

Crónicas de Alice Vieira e Manuela Niza
durante a quarentena da Pandemia da Covid-19

25-10-2020


Quer-me parecer que desta vez o frio já chegou para ficar.
Andou aí a ameaçar mas… agora é que é.

Pus mais um cobertor na cama o que me obrigou a subir ao escadote e a pensar pela milésima vez que não faz sentido nenhum que uma velha como eu tenha coisas guardadas quase no teto. 

O que não me passou pela cabeça foi que podia estatelar-me e dar a alma ao criador de um momento para o outro.

Por vezes acredito que sou eterna e dou por mim a olhar o espelho e a perguntar à velha que passa do outro lado: “ quem és tu e onde está a miúda que ainda há pouco corria e saltava?”… Isto é demência! 

Será, mas olhem também não faz mal a ninguém. A mim não me importa. Adiante.

Uma das coisas que me arrependo, de não ter feito aquando das obras aqui em casa, foi uma lareira. 

Mas também, por onde ia eu fazer passar os canos até lá acima? Só se todos os vizinhos fizessem a mesma coisa e, naquela altura, a minha única preocupação era mudar a caixilharia da casa, colocar umas janelas modernas e com “ vidros duplos para manter o equilíbrio térmico”, como dizia o mestre de obras.

Pouco me importava o equilíbrio fosse do que fosse.
O que sim me afligia era… a falta de equilíbrio e o facto de todas as janelas serem de guilhotina, como se usava em tempos.

Aquela ameaça constante, ali ao nível do pescoço, como sentença de culpa que me roía as entranhas, fazia com que eu não me chegasse nem perto das janelas.

Ora eu sem janelinha não vivo!

Mas o medo era tanto que só de pensar em pôr o nariz a assomar e ver quem passava me dava calafrios. 

É que o caso não fora para menos…

Nunca fui muito de arraiais mas o meu defunto sim. Ainda fui algumas vezes ver as marchas à Avenida mas à medida que os anos foram passando deixei-me disso. 

Aquilo é gente que não acaba mais, pisadelas, encontrões, bêbados por todo o lado… ó senhores que canseira.

Ainda por cima o calor costuma ser impiedoso em noite de Santo António. É como se toda a cidade ardesse.

Mas daquela noite lembro-me bem! Então não?

Eu tinha-me deitado cedo depois dum dia sufocante. Tirara apenas a colcha e deixara-me cair assim, sentindo o pouco ar que corria da janela de guilhotina que travara com o velho cinzeiro de pedra.

Era assim todas as noites, desses Verões quentes. Agora, de há uns dois a três anos a esta parte, parece que os Verões são mais tardios … não sei. Já não sinto aquele bafo infernal vindo do asfalto comido pelo sol do dia inteiro.

Devo ter adormecido porque me lembro de acordar sobressaltada com uma algazarra na rua. 
Olhei o relógio da Reguladora na mesinha de cabeceira. Ainda não eram as dez, muito cedo para haver já bêbados na rua.

Assomei-me para ver o que se passava: dois homem brigavam no passeio bem por baixo da minha janela. A coisa parecia séria e quando o mais novo empurrou o outro e ele caiu debrucei-me um pouco mais.

Nisto, o cinzeiro de pedra que o Sr. Engenheiro usava como pisa papéis e eu como travão da janela, caiu lá em baixo.

Um deles olhou por um segundo para cima, antes de subir a rua em passo apressado, quase a correr.

Embora a medo, decidi descer os lanços de escada que me separavam da rua, para recolher o cinzeiro. Sempre era uma peça de qualidade e bonita até.

Fui encontrá-lo deitado sem dar acordo de si, o cinzeiro ligeiramente rachado ao lado da mão.

Pensei que estava bêbado de todo e subi as escadas sem pensar mais no assunto.

Só ao outro dia me dei conta que o homem tinha morrido. Pobre diabo. Pelos vistos caiu mal. Ou então… ai Senhor tem piedade de mim que já confessei e paguei penitência!

Mas claro que não, Socorro.

Nem penses mais nisso. Então a polícia não disse que tinha sido um acidente? Ora um acidente é um desígnio de Deus, ninguém pode evitar.

Deixa-me mas é ir tratar do arroz doce não vá pegar-se-me ao fundo.

É que hoje finalmente o meu neto regressa a casa!

Soube ao outro dia que afinal o tipo tinha batido as botas. Se foi porque caiu e deu com a cabeça no degrau de pedra ou não, desconheço. Também não se perdeu grande coisa.

Remorso? Mas de quê? Eu cá não fiz nada! O gajo é que se agarrou a mim. Eu só o empurrei. Acidente disse a polícia. E eu concordo.

Dras. Alice Vieira e Manuela Niza, Obrigada!

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